quarta-feira, 30 de março de 2011

Pai de primeira viagem

Em meio a esta propagação exacerbada de valores politicamente corretos, dentro da qual quaisquer opiniões pessoais manifestadas com um pouco mais de veemência serão categorizadas, inevitavelmente, como homofobia, pedofilia ou racismo, minha afirmação poderá soar um tanto dissonante, para o horror daqueles que defendem a pena capital para o politicamente incorreto: eu gosto de fazer crueldade.
Não. Não sou um assassino, tampouco ladrão, estelionatário, torturador, estuprador... Mas tenho meu rol de pequenas maldades favoritas. E atire a primeira pedra o politicamente correto que não as tem. Aquele que nunca se escondeu atrás de uma parede e gritou “bu!” para o desavisado que vinha logo atrás. Aquele que nunca passou um trote telefônico. Não sou hipócrita.
Mas este texto não se propõe a divagar acerca da moral e dos bons costumes. A ideia é falar de bicho. E apresentei minha introdução justamente para afirmar que, muito embora eu mantenha meu “Pequeno Rol de Maldades, Travessuras e Diabruras Favoritas” sempre atualizado, existem aquelas maldades cometida contra dois tipos de vítimas, que eu simplesmente abomino. As praticadas contra crianças e as praticadas contra animais. E se a perversidade foi direcionada a um animal-criança, tanto pior.
Poucas coisas são tão ruins quanto bater num filhote de cão. Ainda mais se o cachorro é naturalmente assustado e carrega consigo uma quantidade imensa de traumas por maus tratos, sobre os quais apenas ele pode testemunhar.
Adotar o Ataulfo me fez, pela primeira vez, ter uma noção do que deve ser a paternidade. E não estou exagerando. Ao longo da vida, tive outros animais, todos completamente independentes, como peixes, esquilos-da-mongólia e porquinhos-da-índia... Todos lindos e fofos, mas um tanto impessoais (se for cabível o termo pessoalidade a animal de estimação). Bicho que não atende pelo próprio nome, ou que não faz festinha quando chegamos em casa é meio-bicho.
Houve outros cães, mas não eram exatamente meus. Não tive qualquer ingerência em escolhê-los e havia mãe em casa para lhes tomar conta, de forma que a mim cabia apenas a parte boa: rolar no chão, correr pela casa, espalhar pelos nos tapetes a amassar as almofadas do sofá... Houve também o Iago, meu gato do qual até hoje sinto uma falta enorme. Mas quem já teve um gato sabe que não existe relação de paternidade com o bichano. Gatos já nascem adultos. Sabem o lugar exato para suas necessidades fisiológicas, saem e entram a hora que querem, limpam-se sozinhos e você não precisa perder os cabelos quando eles não voltam para casa até a hora de dormir. São autodidatas e nada têm a aprender com seu dono.
Com cães é diferente. E com o Ataulfo, mais diferente ainda. Arranjei mesmo um bebê. Um cãozinho que só come quando você fica ao lado do prato, que acorda você de madrugada, que o estimula a buscar os mais variados tipos de literaturas e manuais no estilo “cuide bem do seu” ou “tudo que você queria saber sobre”, e que faz xixi pela casa inteira, obrigando-o a fazer faxina várias vezes ao dia nos horários mais inóspitos. E como toda criança, exige muita dedicação, amor e paciência. E como toda criança, precisa ser educado. E como toda criança, requer medidas corretivas.
Mas, sou um pai bastante frouxo, quando a ideia é punir. Dentre minhas malvadezas prediletas, de fato, não se encontram castigos a bebês-cães.
Noite passada foi assim. Após um dia extenuante, cheguei a casa e fui recebido pelo meu bichinho, que fez uma pequena cerimônia-do-pula-na-cara-do-papai para mim. Eu apenas desejava um bom banho frio, cair na cama e ficar ali, deitado, fazendo carinho no meu filhote, até que adormecêssemos. Mas, antes que se passassem trinta ou quarenta minutos de minha chegada, ele fez seu primeiro xixi noturno. Dentro de casa. No meio da sala. Eu, que já vinha apresentando um sinal de impaciência com este tipo de incontinência canina, e que já vinha tentando adotar uma educação construtivista ao moleque, apenas ralhando, assim mesmo, verbalmente, decidi que era hora de testar algo novo.
Bati no Ataulfo com um jornal, esbravejando acerca do erro do seu gesto. E ainda que o português do meu cãozinho não esteja muito desenvolvido, tenho absoluta certeza que ele entendeu a mensagem transmitida através da minha linguagem corporal. Ele correu pela casa, tentando se esquivar, ganiu, chorou, escorregou na própria poça amarelinha e saiu espalhando urina pela casa inteira na sua fuga desesperada.
Tranquei-o no quintal e fui forçado a fazer uma faxina completa em casa, o que consegui realizar em um tempo consideravelmente rápido de quarenta minutos. Ainda meio zangado, dei um banho no bebê-cão e tomei o meu em seguida. Supus que então eu teria meu merecido descanso, quando, em um ato de protesto, ele decidiu que precisava de um mictório mais macio e confortável. Ao vê-lo encharcando a cama, perdi de vez a paciência e não corri sequer em busca de um jornal para utilizar como corretivo. Bati com minha mão espalmada, que tem um peso consideravelmente maior que uma folha de papel enrolada.
E enquanto gritava – literalmente – com o rebelde, a mesma corrida pela casa, a mesma tentativa de se esquivar, o mesmo ganido, o mesmo choro. Só não teve escorregão, pois desta vez seu xixi não estava no piso, e sim, sendo rapidamente absorvido pelo meu colchão.
E foi neste momento que começou a minha pungência. Acuado sob a escada, no seu refúgio, meu filho me olhou com aqueles olhinhos escuros de quem não está entendendo coisa alguma – e urinou outra vez. Desta vez de medo! A violência contra animal-criança havia sido praticada por mim mesmo e eu estava odiando aquilo. Toquei nele, e ele tremia, sentado sobre sua terceira poça amarela da noite, ignorando completamente o banho que havia acabado de tomar. Eu já me sentia péssimo e em uma fração de tempo lembrei-me de todos os traumas que eu já sabia que tinham vindo junto com meu cachorro tão lindo. Lembrei do pavor que ele sentia das pessoas e do quanto ele evoluiu nos últimos dias, tornando-se bem mais sociável.
Poucas coisas são tão ruins quanto bater num filhote de cão. E pouquíssimas são piores do que olhar nos olhos do filhote de cão em quem você acabou de bater. Aquela troca de olhares me disse, no português mais claro que o Ataulfo ainda não aprendeu a falar, que ele estava muito mais do que assustado. Estava aterrorizado, sentindo-se confuso e traído, por estar sendo tão duramente repreendido pela pessoa que ele escolheu para confiar, apenas por não conseguir controlar seus instintos naturais de cachorro e sua bexiga incontida de bebê.
Ali, enquanto eu o olhava de forma tão severa, falando num tom de voz que, seguramente, ainda não era o meu natural, normalmente bem menos áspero, eu lutei contra a vontade de fazer carinho no meu bichinho medroso e a necessidade de fazê-lo entender que seu banheiro não fica dentro de casa. Assim, sentindo-me estilhaçado, fechei a porta dos fundos, deixando-o no quintal, e voltei para o quarto para terminar a limpeza e virar o colchão no qual, nesta noite, eu dormiria sozinho...
Felizmente, a dedicação do cãozinho sobrepuja o rancor, típico de nós, humanos. Acordei e, ao abrir a porta dos fundos, lá estava ele, pronto para nova cerimônia-do-pula-na-cara-do-papai, dizendo-me para eu esquecer a noite passada, pois, apesar de tudo, ele me ama e ainda confia em mim. Por sua vez, seus olhinhos de filhote me diziam para que eu me lembrasse daquele segundo terrível em que o vi acuar-se sob a escada, trêmulo e assustado, e para que, a cada vez que o fizer, eu pense, quantas vezes forem necessárias, antes de levantar a mão para castigá-lo. Até porque, no auge deste mea culpa que não sei se algum dia meu cachorro chegará a ler, estou mais certo de que pai de verdade acorda de madrugada quando o bebê chama, troca suas fraldas e o protege quando ele está assustado. E é óbvio, comemora cada aprendizado do seu filhote, recompensando-o – com um ossinho – por ter dado um novo passo.

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