segunda-feira, 9 de agosto de 2010

O Rato

No escuro, sinto o animal que existe dentro de mim devorar-me a carne. Ouço cada mordida. Sua mastigação é lenta. Um rato, talvez, que rói incessantemente. Na agonia noturna, o abraço não me conforta. Antes, incomoda-me. Incomoda quando tento me revirar com a dor que queima e sinto-me atado, sem poder me mover. Incomoda quando penso que tempos atrás, tudo que mais desejei foi um abraço como este, quente, forte, intenso, e agora que o tenho, não o desejo mais.
Este afogamento constante rouba – da forma mais violenta – minha concentração para qualquer ato. E a dor, a vergonha e a humilhação fazem coro na minha cabeça, insistindo que não vieram de visita. Quem sou, que não me reconheço?
Sequer encontro a resposta, pois cada vez que tento pensar a respeito, o rato morde outra vez, e sua cauda inquieta faz-me espirrar, causando um terremoto interno, retumbando na caixa acústica formado pelos buracos internos do meu rosto.
Tento, então, abraçá-lo, mas o calor que vem dos seus braços não aquece o frio que sai pelos meus poros. E quando afasto as mãos dos meus olhos, sinto latejar minha face.
Dor maior é lembrar que não faz muito tempo, eu ri de tudo isso, fazendo-me forte e bradando aos quatro ventos: “sou mais forte que isso!”
E agora, essa força se afigura estranha, como aquele vizinho com quem você brincou na infância, e que os anos trataram de conduzir a caminhos opostos ao seu. Então, quando, anos depois, vocês se reencontram ao dobrarem uma esquina, faz-se constrangedor o silêncio entre vocês, que nada mais têm em comum, senão um passado remoto e lembranças, um tanto nebulosas, aliás...
A vida é uma casa, que devemos arrumar quando queremos abrir as portas para que alguém adentre. E hoje, não consigo encontrar as chaves com as quais tranquei todas as entradas. E, do cárcere privado que fiz de mim para mim, observo pelos vidros sujos qualquer um que bate, desejando entrar. Coloco as mãos espalmadas nas paredes, na esperança de que, pelo lado de fora ele sinta o calor do meu toque. E no fim, após insistir, ele apenas vira as costas e segue pela rua, em busca de uma nova casa, cujas portas estejam abertas...
E a noite não passa. E esse escuro que me atormenta faz parecer maior o ruído que o rato faz quando me rói. E se o buraco aumenta, porque o ar não penetra? E lembro com saudade quando, silenciosamente, eu me deitava de boca fechada, garganta confortavelmente umedecida, cerrava os olhos e adormecia. O peito subindo e descendo lenta e silenciosamente numa respiração tranqüila.
Rendendo-me ao breu, reviro-me na cama, tentando encontrá-lo, tão perto e, também, tão longe, sem conseguir planejar nada, com medo do dia seguinte, maldizendo cada segundo em que penso no rato. Se ao menos eu chorasse, mas sinto secos os meus olhos. Passo meus braços em torno de si, mas novamente, num reflexo, sinto a necessidade de devolvê-lo ao meu rosto, afastando-me dele.
E assim, vejo sob a fresta da porta, os primeiros sinais de que a noite se dissipa, trazendo o alívio momentâneo da luz de um novo dia, mas incapaz de suplantar o pensamento persistente de que dali a 12 horas o escuro voltará a reinar.

2 comentários:

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  2. O tempo, inexorável, tão exterior e marcante, e as vezes tão imperceptível. Quando criança parecia que ele não existia. Um mundo de pessoas grandes que tudo podiam e os pequenos brincavam na fantasia de serem adultos.
    As vezes me entristeço por não lembrar dos detalhes, mas a impressão principal fica marcada pro resto da vida.
    Há alguns anos uma criança veio ser nosso vizinho. Vinha de um lugar com um nome que nunca tinha ouvido, uma tal de Linhares que nem sabia onde ficava. Mas, sabe como é criança, logo fazem amizade e começam a brincar e fantasiar a vida. Lembro que muitas vezes minha mãe me buscava, muito tarde, pois as horas passavam muito rápidas, entre um sorvete, uma bola de gude, um pedaço de flauta, ou um do jogo de xadrez, finalizado com o tombar de um rei encurralado.
    Não posso generalizar, mas sinto que não percebo o tempo da mesma forma que percebia antes. E o menino foi viver sua vida, longe dos amigo que fizera. Neste feriado, percebi nos olhos marejados de seu pai, e nas histórias mirabolantes que ele conta, que também sinto saudades deste menino. Comentei com meu irmão e ele me disse: “Ah... manda um abraço pra ele também”.
    É muito bom saber que você está bem, depois da tempestade. Manda noticias pra gente, os vizinhos inda lembram de você. Um forte abraço!

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