quarta-feira, 23 de novembro de 2011

O Gado da Central

Não se pode dizer que desde sempre essa gente se porta como gado, sem capacidade de tomar decisão, sem organização do poder que lhe cabe, de forma a permitir melhoras e benfeitorias em sua existência vazia e desinteressante, vivendo tão somente para satisfazer necessidades primárias, como alimentação, descanso e reprodução... Mas é inquestionável que a coisa vem de longa data, inspirando autores, músicos e poetas a comparar a vida humana à vida de gado... É assim na política, enfocando-se na condição de autômato do eleitor; é assim na educação, tomada em sua acepção mais estrita, enfocando-se o aluno que desenvolve estratagemas dos mais imorais para galgar os degraus formais da escola, sem se preocupar com sua capacidade de raciocinar; é assim no metrô...

Abrem-se os portões do curral chamado Central do Brasil e todo o gado entra em debandada... O Gado da Central não tem quatro patas. Não muge. Não come grama. Não tem chifres e tampouco sacode a cauda para espantar parasitas incômodos. O Gado da Central é a vaca que carrega uma bolsa a tiracolo, que fala ao celular e corre para não chegar atrasada em seu escritório. É o bezerro que ouve funk sem fone de ouvido e em volume altíssimo, obrigando todo o curral a compartilhar seu som de gosto duvidoso. É a novilha de cabelo escovado, cuja chapinha lentamente se desfaz e gruda em sua testa, que transborda suor, como consequência do tempo abrasador desta cidade quando o verão se aproxima de forma inexorável. É o touro engravatado, que enverga um terno sóbrio, revelando o quão superficial é o traje - mera embalagem que nada tem a ver com sinônimo de boa educação...

O movimento das reses tem vida própria e quando toca o sinal avisando que a próxima estação está a caminho, toda a manada dispara, empurrando, pressionando, pisoteando e ofendendo a rês ao lado, por estar ocupando um lugar que seria seu por direito absoluto, como se a condição daquele fosse menos tormentosa que a sua por estar ali. A porteira se abre e as cabeças mais fracas são empurradas para fora pelo fluxo que se evade do curral, enquanto pelo lado externo, o gado que entra pisoteia tudo em seu caminho, formando-se, por alguns segundos, uma linha de batalha aterrorizante, na qual há uma disputa para se definir se o movimento dominante será o da boiada que entra ou da boiada que sai.

Assusta saber que este mesmo gado figura no ápice da escala evolutiva, como a criatura superior a todas as outras, tendo alcançado o topo darwiniano, do qual não existe mais possibilidade de subida e crescimento. E, no entanto, porta-se como um ser primitivo, inserido nas condições mais aviltantes e sub-humanas, sem ao menos se utilizar do poder que possui - demonstrada por sua inquestionável capacidade de empurrar e tomar à força o espaço que era do outro - para exigir um meio de transporte mais digno. Sim, pois o gado não está feliz com sua condição. Deseja fugir do seu status quo, mas não consegue - ou não quer - imaginar como fazê-lo.

Se todo o Gado da Central do Brasil se unisse com a mesma voracidade com que se une para invadir o curral, objetivando não um lugar desconfortável dentro metrô, como se disto dependesse sua vida, mas um metrô funcional, dentro dos padrões técnicos internacionais, os responsáveis pela concessionária de transporte público seriam arremessados contra a parede com a mesma intensidade com a qual diariamente as reses lançam-se umas às outras. E assim, talvez, por um momento único de sua existência mecânica, o gado pudesse ser alçado à condição de gente.

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