sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Consciência

Consciência

Num boteco, cá estava eu sentado
Em contemplativo solilóquio interior
Vendo à mesa que uma turma ocupava
Divertindo-se ao redor de garrafas vazias
Quando, a céu aberto, deu-se a cena
Que ora aqui descortino

Tirando da algibeira um maço
Tomando para si o primeiro cigarro.
Pôs-se alguém ali presente a fumar.
Passava um transeunte maltrapilho
Que diante do envolvente aroma
de câncer com tabaco
Parou, mãos espalmadas, à sua frente:

— Não tenho fome, devo ser sincero.
Alhures, já alguém me alimentou.
Dê-me apenas um cigarro! Que da vida
não recebo um mísero prazer.
Esta existência desgraçada tudo me negou,
e tampouco vícios tive o direito de cultivar.

Sequer hesitou a pessoa que fumava.
Pôs no bolso a mão, e de volta trouxe o maço
que inteiro deu ao desafortunado.

— Assim tu me constranges — disse o roto —
Pedi somente um, posto que nunca tive nada.
E nunca aprendi a lidar com muito,
que sempre foi meu desconhecido.

— Leve tudo, não há vergonha alguma.
De onde trouxe este
deu-me a vida a chance para lá voltar.
Cá estão minhas ébrias amizades
Rindo-se comigo nesta hora
de consciências cambaleantes e risos frouxos.
Se nada nesta mesa me foi dado
e tudo que secamos teremos que pagar,
cá estamos porque pudemos.
Não é mérito,
há também sortes e acasos.
Desigualdade que a ordem propicia
E a história explica.
Como posso aqui fartando-me estar
de bebidas e frituras que me custam
além de moedas, também fígado e artérias,
quando há gente, como tu, tão miserável?
Acende teu cigarro e todos os outros,
Pega para ti também uma garrafa.
E segue em paz o teu caminho.

Partiu, então, o pedinte, esfumaçando
A brasa acesa que entre os dedos punha aos lábios
Curvados num incrédulo sorriso.
À mesa, poucos metros adiante
Deste narrador da cena urbana aqui descrita,
Voltavam a beber, brincar e rir
Os comensais que ali estavam
E que alguma coisa celebravam
E eu jamais saberei o quê.

Rio, 30 de setembro de 2023

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