terça-feira, 20 de junho de 2023

Etarismo também é estrutural

Nossos discursos nos traem com muita facilidade. Dia desses, numa conversa sobre envelhecimento, etarismo, crise dos 40, dos 30, uma amiga comentou: "não tenho nenhum problema com a minha idade, não me sinto uma pessoa de 40 anos, sinto-me ainda com 20".

Ficam as perguntas: o que é ter 40 anos? E o que é ter 20?

Minha amiga, que é pouca coisa mais nova que eu, não tem nenhum problema com sua idade. Mas, sem se dar conta, atribuiu valores específicos às idades, como se um número conferisse em si mesmo um valor para além da grandeza numérica de contagem do tempo.

Lendo nas entrelinhas, ao dizer que "não se sente uma pessoa com 40", minha amiga quis dizer "não me sinto velha". E a ideia de "velha" aqui veio carregada de sentido, de qualidades ocultas, subentendidas, e não exatamente positivas. Como se uma pessoa de 40 sentisse algo específico, inerente aos seus 40 anos. Algo ruim. Algo do qual se desvencilha quando se diz que não tem "nenhum problema com a idade", isto é, como se ter determinada idade fosse um problema e, demonstrando não ter esse tipo de problemas supostamente inerentes à idade de 40, argui que se sente com 20.

O que é "sentir-se com 20"? É ser jovem? Jovialidade é um atributo constantemente buscado na nossa sociedade, razão pela qual o etarismo — a discriminação de pessoas por causa das suas idades — se faz tão presente. Quando negamos um problema com a idade, dizendo que sentimos como se nossa idade não fosse aquela do problema, mas outra, correspondente à sua metade, estamos inconscientemente e involuntariamente atribuindo valores negativos ou positivos às numerações.

Eu tenho 43 anos e me sinto com 43 anos. Também não tenho problema com a idade. E por isso mesmo, apenas tenho a minha idade e me sinto nela. Porque ela é só um número. Se me sinto jovem, velho, disposto, cansado, belo, feio, ou qualquer outro juízo valorativo que possa ser atribuído a um corpo que sofre os efeitos do tempo, eu estarei me sentindo jovem, velho, disposto, cansado... E não "me sentindo com 20, 30, 40 ou 43 anos".

Minha amiga não é etarista. Não conscientemente, não deliberadamente. Mas, sem perceber, usou em seu discurso significados (velho, novo, jovem etc) tão entranhados nos significantes (o número de anos que vivemos), que, sem a intenção, reproduziu os mesmos preconceitos etaristas estabelecidos socialmente. É preciso estarmos atentos para não reproduzirmos e perpetuarmos preconceitos.

Fazemos o mesmo quando dizemos que alguém tem "cara de pobre", ou "cara de ladrão", "cara de quem ouve pagode" quando nos deparamos com determinadas características físicas da pessoa. Ou ainda, quando pelas mesmas características, supomos que aquela pessoa trabalha na loja em que estamos comprando. Mas, aí já estamos indo para uma esfera mais grave: a prática de um crime. E essa discussão fica para uma outra ocasião. Estejamos sempre atentos com o poder que o nosso discurso tem de nos trair.

Nenhum comentário:

Postar um comentário