terça-feira, 8 de novembro de 2022

O ser e o dever ser

O SER E O DEVER SER

Voltando do Centro para casa num ônibus velho, sujo e caindo aos pedaços. Na porta um adesivo onde se lia "Para sua segurança este veículo só se movimenta com as portas fechadas". O veículo estava andando. A porta onde estava o adesivo estava aberta. Lembrei que só nesta semana no Rio, duas pessoas caíram de dois ônibus em movimento, que trafegavam de portas abertas. Provavelmente ambos tinham o mesmo adesivo.

Quando o Léo Aprígio pediu para eu tomar cuidado, eu respondi: "Não tem perigo, o ônibus não se movimenta se as portas estiverem abertas". Óbvio, era zoação. O ônibus estava se movimentando e sequer estava em baixa velocidade. "Não está vendo a placa?" Prossegui, apontando para o adesivo. As portas escancaradas.

Era evidente a distância entre a frase no adesivo e a materialidade do fato. O fato era que o ônibus estava andando. Não importa o que diz a norma no adesivo, nenhuma pessoa sensata contestaria o fato de que o ônibus estava andando e que aquele adesivo era um engodo. Alguém atestaria a validade de uma norma abstrata contida num adesivo, diante da realidade material que inequivocadamente a invalida?

Assim é com a legislação no estado burguês. A Constituição Federal diz em seu artigo 5º que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade".

Diante disto, ficam os questionamentos: somos, de fato, todos iguais? Temos todos as mesmas oportunidades de condições, os mesmos direitos e as mesmas obrigações? Ou será que somos o ônibus de portas abertas correndo pela Avenida Presidente Vargas desdenhando da norma que insiste em dizer que estamos parados?

Obviamente o ônibus estava andando. O adesivo estava equivocado. Deveria estar escrito: "Este ônibus anda, sim, de portas abertas, mas não deveria". Da mesma forma que não somos iguais perante a lei, mas deveríamos ser.

E mesmo com isso, insistimos em fingir que a norma - essa mera abstração - tem primazia sobre a materialidade. Na minha zoação, fechei os olhos à realidade ao dizer que o ônibus não andava de portas abertas porque o adesivo nele colado assim dizia. Vejam bem, eu não disse que ele "não andaria" e sim que ele "não andava".

Assim também fechamos diariamente os olhos quando fingimos que a norma geral a abstrata no Estado burguês tem primazia sobre a realidade material. A materialidade escancara diante dos nossos olhos a inconsistência da lei quando nos mostra que não há democracia nisto que chamamos de Estado Democrático de Direito. E assim, por acreditarmos na mentira da norma, despencamos na pista a cada curva que o ônibus faz enquanto corre veloz chacoalhando suas portas abertas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário