terça-feira, 31 de outubro de 2023

O benefício da dúvida porque eu sou gente boa pra c**alho

É consenso [ou não?] entre marxistas a relação direta entre a miséria a que são submetidas determinadas pessoas e a criminalidade. Não analisamos a criminalidade pelo viés moral. Não determinamos o caráter e a moralidade de cada pessoa que pratica um ato considerado delituoso, decorrente da situação de precariedade e vulnerabilidade a que é submetida.

Não discordo disso e venho pensando muito a respeito do assunto. Se já era fácil me fazer de trouxa, hoje tem sido praticamente inevitável. Venho me tornando paradoxalmente mais tolerante no julgamento que faço a respeito das condutas das pessoas ao meu redor, quando se trata de qualificá-las como boas ou más. Não é sempre, claro. Tenho meus desafetos e não são poucos. Mas, entender a influência do meio sobre a construção da subjetividade de alguém me permite ser mais tolerante. Veja bem, eu disse "influência" e não "determinação". Em vez de lhe apontar o dedo na cara e questionar sua intenção de me causar um dano, colocando em xeque o seu caráter e categorizando-o sumariamente como uma "pessoa ruim", começo a questionar a que tipo de influências essa pessoa foi exposta e quais são suas razões para determinadas posturas.

Vivemos em um sistema que nos mantém sob a constante ameaça da perda. O medo é um instrumento de controle e nos mantemos neste sistema por medo. Medo de perder. Medo de fracassar. Medo da miséria. Medo da fome. Medo de não pagar o aluguel. Medo de não poder sustentar o filho. Em um sistema pautado na escassez, que nos põe a todo o tempo na ameaça da perda, segurar o nosso é estratégia de sobrevivência. Farinha pouca, meu pirão primeiro. É assim que dizem.

Não se iluda. O emprego que você tem coloca dezenas ou centenas ou milhares de pessoas na miséria. E tem gente morrendo de fome no mundo porque você consegue comprar a sua pizza numa sexta à noite. Horrível né? Não se culpe. A responsabilidade não é sua. Questione o que o sistema te impõe.

Digressões à parte, estamos todos apenas querendo viver nossa vida em paz, com o mínimo necessário. Acontece que meu mínimo necessário é o parâmetro que eu trago pelas minhas vivências. O seu mínimo necessário pode ser um prato de comida, quando você desafortunadamente "se acostumou" a viver na rua e passar fome. Ou pode ser um carro e uma casa, quando seu lugar na sociedade sempre lhe permitiu gozar destes direitos. Mas, quando tudo é uma ameaça ao tão pouco que o sistema já nos lega, nosso elástico moral se estica ao limite da nossa necessidade. Às vezes precisamos desesperadamente mostrar serviço porque sentimos desesperadamente o medo da insegurança de perder aquele emprego. Às vezes precisamos desesperadamente roubar um prato de comida porque sentimos desesperadamente a fome e o medo de que ela perdure.

Frequentemente tomamos nosso ponto de vista não como um ponto de partida, mas como O Ponto de Partida. Como se fôssemos a régua que mede o mundo. E até compreendemos o desespero do moleque faminto, porque sua realidade tanto se distancia da nossa, que conseguimos enxergar o contraste. Ao contrário, quando vemos atitudes questionáveis de pessoas do nosso convívio, tendemos a julgá-las negativamente. Frequentemente de forma liminar. Afinal, quando nos tornamos parâmetro para mundo, pensamos ser óbvio que tal atitude não foi adequada a uma "conduta normal", o nosso parâmetro de normalidade, a nossa conduta, a conduta que faríamos. Eu e você. E se eu e você faríamos, pensamos ser óbvio que qualquer outra pessoa perto de nós faria também. E, na nossa visão, se há uma justificativa plausível para mim e para você agirmos de determinado modo, e aquela outra pessoa agiu diferente, inferimos automaticamente que aquela pessoa tem uma conduta moral inadequada. É uma pessoa má, que não merece nossa compreensão, mas nossa raiva ou nosso desprezo. Começo a questionar essa mania de tacharmos uma pessoa de má. Já fui chamado de "relativista" por pensar assim. E não era um elogio.

Não sei você, mas quando não vejo no outro uma ameaça direta a mim, pautada no desejo da minha aniquilação, manifestado na intenção de me causar um dano, passo a não enxergar no outro a fonte da minha raiva. Ainda que seu comportamento me cause um dano. A raiva é da situação e não da pessoa. Isto me direciona a questionar o que está além da capacidade de escolha consciente do outro, isto é, a estrutura dentro da qual se insere que o moldou àquela forma que hoje ele manifesta.

Quando o moleque me rouba na rua, sinto frustração pela minha perda material, mas não direciono meu ódio ao assaltante e sim à toda engrenagem social que cria naquela pessoa a necessidade de assaltar alguém, que por azar fui eu.

A raiva canalizada numa mesma direção é uma arma política poderosa. No meu dia a dia lido com gente marginalizada por muitos lados. Uma parte considerável das minhas relações sociais são com pessoas de alguma forma excluídas ou marginalizadas. Tenho amizades, relações profissionais, contatos virtuais e presenciais com pessoas pretas, periféricas, transgêneras, mães solo, precarizadas, desempregadas... gente que "faz seus corre" porque, antes de tudo, foram ensinadas que a vida é uma coleção de perdas, e depois, que é preciso garantir o seu. Olha a farinha pouca aí.

E justamente nessas pessoas, vejo a todo momento condutas moralmente questionáveis que poderiam fazer com que o caráter de muitas delas pudesse ser posto à prova, colocando-as como pessoas em quem não se devesse confiar e de quem eu deveria me afastar. Vejo isso a todo canto. Pessoas se perdendo umas das outras ou sequer se permitindo criar conexões porque presumem e se afastam, sem buscar uma compreensão do fenômeno. Uma legião de indivíduos postos na solidão e queixando-se de solidão.

Imagino quão solitária é a existência de quem vê em todos ao redor uma ameaça, alguém de quem se deve manter distância. Na moral, tenho preguiça. Prefiro me esforçar para ver em todos ao meu redor uma conduta justificável por seu medo somado à uma necessidade de sobrevivência em um mundo de escassez. Em vez de me afastar de alguém por vê-lo como uma ameaça, opto por me aproximar de alguém por vê-lo como uma vítima do mesmo sistema que massacra a todos nós e contra o qual quero justamente unir esforços para destruir. É, no mínimo, útil, buscar elementos de aproximação em vez de elementos de repelência.

Fora que é legal pra cacete ser gente boa e todo mundo gostar da gente. Em um mundo neoliberal, em que as pessoas estão cada vez mais ensimesmadas e individualistas, dado que a própria organização da sociedade capitalista nos coloca integralmente na condição de concorrentes umas das outras, sinto um pouco de paz em levar minha vida sem achar que todas as pessoas ao me redor me odeiam e desejam meu mal. Antes, vejo que cada uma só precisa garantir para si aquilo que sua existência lhe ensinou ser o mínimo necessário. E no caso das minhas relações sociais, são o mínimo mesmo.

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