quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

Que Rei Sou Eu?

O papo era sobre programa humorístico de TV aberta dos anos 90 e anos 2000. Meu interlocutor comentou que nunca gostou do “Casseta & Planeta”, ao que rebati com a fala: “Eu adorava [quando adolescente]. Hoje eu acho que odiaria. O zeitgeist dos anos 90 permitia achar graça naquele formato machista, homofóbico, capacitista, racista...”

Em tempo, quando uso numa conversa informal a palavra “zeitgeist”, há uma certa pitada de ironia nela. Na verdade, não sei se é exatamente ironia, mas há um certo gracejo no uso do termo, que por ser rebuscado demais para papos de botequim e de aplicativos de mensagens instantâneas, soa pedante. É um uso reducionista por sua mera tradução literal, aqui empregada como sendo o “espírito do tempo”. Quem pôde ver Banheira do Gugu nos anos 90 ou os Trapalhões nos 80 sabe que racismo, homofobia, objetificação do corpo da mulher e sexualização infantil eram bastante tolerados pela sociedade conservadora — e hipócrita — que consumia essa programação na época. Era o espírito daquele tempo.

A partir desse momento, pus-me a refletir sobre a influência da programação televisiva na formação da nossa personalidade. É algo que venho observando já há algum tempo em mim próprio, num exercício de autoconhecimento. Estou revendo a novela “Que Rei Sou Eu?”, que foi exibida na Globo em 1989, em um contexto sociopolítico bastante específico, após a promulgação da Constituição Federal de 1988, que formalmente extinguiu o regime ditatorial no Brasil, inaugurando o suposto estado democrático de direitos que, também supostamente, se encontra vigente até hoje (sabemos que é um mito, mas não é o assunto aqui).

A novela é ambientada no ano de 1789, num país fictício, o Reino de Avilan, governado por uma rainha medíocre, Valentin, e um rei tirano, Petrus III, um impostor que usurpou o trono que, por direito seria de Jean Pierre, um plebeu revolucionário que é filho bastardo do rei falecido Petrus II. Debatendo a luta de classes entre os rebeldes, grupo de plebeus liderados por Jean Pierre, e a nobreza, representada pela corte que vive no palácio às custas da exploração do povo, a novela satiriza o Brasil da época, comparando-o à França absolutista, portanto, pré-revolução. Os rebeldes passam a trama tentando tomar o poder e extinguir aquela classe parasitária, assim como fez a burguesia, que um dia foi “a esquerda”, na Revolução Francesa.

Estar revendo essa novela tem sido uma experiência fascinante. Para o bem e para o mal. Durante anos, talvez por ter sido a primeira novela que vi na vida, “Que Rei Sou Eu?” foi a minha novela favorita. Para a criança de nove anos que eu era, aquele cenário de reis e rainhas, castelos, cavaleiros, bruxos e feiticeiras era lúdico. Basicamente era o que eu via. Hoje consigo ver como tudo era mal-feito, das atuações aos erros de continuação, dos figurinos aos cenários. O texto no geral é um horror, com personagens vazios que falam gritando o tempo inteiro, o que talvez fosse o padrão humorístico da época (a novela se propunha a ser uma comédia satírica) e se contradizem de uma cena para outra, feitas nitidamente para “encher linguiça”.

Sobre o espírito do tempo, hoje eu fico chocado como as relações abusivas oriundas da opressão de gênero eram naturalizadas na nossa sociedade. Há um machismo escancarado e absurdo. Importante mencionar que os costumes retratados na novela, embora ambientada no final do século XVIII, eram os dos anos 80, nos quais eu passei a minha infância e dos quais recebi todas as influências.

A sociedade dos anos 80 era imensamente mais tolerante e conivente com esse comportamento que a atual. A tal ponto que os próprios mocinhos do enredo, personagens que agem em conformidade com a moral vigente (construídos para serem as influências positivas com as quais o público supostamente deveria se identificar) agarravam as mulheres à força, num enredo tecido de tal modo, que o espectador ainda torcia pelo "romance do casal", que inevitavelmente aconteceria ao final da novela.

Há uma personagem "feminista" que, em uma cena emblemática, expõe uma argumentação sobre a libertação feminina. Representando a mulher independente e emancipada, ela solta a pérola "foram ideias que meu marido me deu". Sim, era ruim nesse nível.

Apesar de tudo, há uma parte da novela que envelheceu muito bem, que é justamente a abordagem da luta de classes. Neste aspecto, o texto segue atualizadíssimo e eu quase fico admirado pela Globo permitir em seu horário nobre aquele texto falando abertamente sobre revolução e tomada do poder pelas camadas populares do Reino de Avilan, com quem o público iria se identificar e que, naquele contexto social, poderia ser facilmente identificada como uma revolução proletária. No livro “Realismo Capitalista”, Mark Fisher expõe como a sociedade está tão mergulhada na ideologia dominante que, para nós é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo, o que ajuda a explicar o fato de não termos ainda nos mobilizado efetivamente para promover uma revolução socialista. Isso explica a Globo não ter preocupação alguma com a influência que sua novela exerceria sobre as massas trabalhadoras. E é por isso que eu apenas “quase” me admiro, mas não me admiro de fato.

Por tudo que expus, está sendo muito interessante ver como essa novela me colocou em contato pela primeira vez com algumas formas de relações humanas e com sentimentos socialmente construídos, e que por anos estiveram arraigados na minha forma de ver o mundo. A minha forma de entender as relações monogâmicas, o ciúme, a amizade, o poder, durante muitos anos da minha vida, foram as que eu vi nessa novela.

Há uma personagem, a princesa Juliette, que embora seja da nobreza parasitária, é uma pessoa "do bem" e colabora com os rebeldes que querem tomar o poder. É uma jovem romântica, apaixonada pelo rei impostor, que é um tirano sanguinário. Ele mata, explora, oprime populações inteiras das vilas da Avilan. Ela odeia o que ele faz, mas não abre não do seu amor por ele. Nas entrelinhas a mensagem que ela passa é que não importa o que ele faz, se ele é o seu amor, ela vai lutar por ele, a qualquer preço. Para ela, o que importa é o que ele faz com ela própria, a despeito de como ele age para com os outros. Para ela, não importa que ele seja um assassino; se ele demonstra que a ama e se ela também o ama, então nada mais é relevante. É tipo “quem ama aceita qualquer coisa em nome desse amor”. Se eu não tivesse inconscientemente aprendido essa mentira, eu teria evitado muitos relacionamentos abusivos aos quais me submeti acreditando que o amor nos obriga a tudo.

A novela mostra a figura do homem forte, guerreiro e corajoso, e da mulher frágil, a donzela desprotegida. Há uma construção maniqueísta do bem e do mal sem nuances entre os extremos, que por anos povoou meus pensamentos, fazendo-me naturalizar essas formas sociais. E claro, a TV não deixava barato quando expunha o homem gay. O personagem gay era sempre o ridículo, o motivo do riso, de quem até mesmo os protagonistas, bonzinhos, mocinhos, zombavam. Quem se sente confortável para se aceitar gay quando suas referências são as de que você é alguém de quem os outros devem rir e ridicularizar? Lembro como me sabotei durante minha adolescência, escondendo da minha família a minha orientação sexual, mesmo testemunhando dentro da minha própria casa que havia ali um diálogo aberto sobre o assunto, mas que mesmo assim, não me deixava confortável, fazendo-me crer, sem nunca encontrar qualquer razão para isso, que ali eu não teria acolhimento.

Hoje eu me dou conta de que, por ser uma criança e um adolescente extremamente tímido e de poucas relações, eu era testemunha das relações dos outros, que eu via apenas na TV. E na TV eu via que pessoas gays eram alvo de chacota. Não importava que dentro de casa não fosse, a minha experiência me mostrava que "em todos os outros lugares" o gay seria alvo de chacota. O que eram esses “todos os outros lugares”, senão a TV, que era tudo o que eu conhecia do mundo?

Revendo a novela e revendo alguns filmes da época (exercício que também tenho feito e que tem sido surpreendente), eu entendo bem mais o pensamento de que crianças não devem ter acesso a determinado conteúdo sem a supervisão de um adulto. Não sei se proibiria. Nunca fui proibido de ver. Mas, creio que eu não deixaria um filho livre para ver tudo que quisesse, como eu mesmo fui deixado. Não reclamo da educação que recebi. Aliás, sempre elogiei essa permissividade que eu tinha. Eu sentia que tinha uma liberdade que meus colegas de escola não tinham: eu via filmes de terror que seus pais não os deixavam ver, e sempre achei que não tinha nada de problemático nisso. Mas, hoje, percebendo como minha personalidade foi formatada através das mídias a que eu tinha acesso, posso observar que durante muito tempo, naturalizei construções sociais nada saudáveis.

Hoje, certamente eu não proibiria um filho de ver nada que quisesse. No entanto, eu veria junto e depois conversaria a respeito. Vai querer ver filmes de terror, sozinho na sala à meia-noite, como eu via quando eu tinha sete anos de idade? Pode até ver. Mas eu vou ver também e a gente vai falar sobre isso depois. Lembro-me como eu achava o máximo porque minha mãe sempre me deixava ver filmes e novelas, e a única coisa que ela exigia era que no dia seguinte eu acordasse para a escola, sem dar trabalho e sem me atrasar. Havia uma noção de recompensa na educação que recebi. "Posso fazer o que quiser desde que...".

E essa noção até hoje me acompanha em muitos aspectos. No trabalho é assim. Eu não seria o chefe que instituiria formas específicas de trabalho, como cumprimento de horário, ou mesmo comparecimento ao local de trabalho. Mas, quando quisesse o resultado, ele deveria estar na minha mão quando eu pedisse. Quando tive estagiários, eu era sempre um advogado querido porque vivia aliviando seus lados, desde que os resultados fossem entregues. Quando cobrava cumprimento de horário era sempre porque eu estava sendo cobrado também por alguém hierarquicamente superior.

Por muito tempo, pensei que se algum dia tivesse um filho, educaria dessa mesmíssima forma como eu fui. Mas, hoje, revendo essa novela, revendo filmes que via quando criança, e observando a relação inequívoca entre o que eu via e a pessoa em que me tornei, eu jamais deixaria um filho ter acesso a determinados conteúdos sozinho. Graças aos deuses, nunca tive filho, porque hoje eu teria um monstro em casa. A forma como eu me vejo educando uma criança hoje é muito diversa do que eu teria feito uns anos atrás. Por mais que pregasse certos valores, como honestidade, dignidade etc., ainda assim, eu tinha umas noções bem individualistas sobre meritocracia, esforço, superação, que eu teria feito questão de reforçar numa criança para "prepará-la para o mundo" e que hoje fariam com que eu tivesse transformado meu filho num ancap e hoje o odiasse. Eu fui moldado numa ideologia liberal, né, gente? E eu era liberal em todas as suas contradições. Teria pregado ideias de liberdade, igualdade, respeito, direitos, "desde que..." E aí, tolerando racismo e misoginia, incluindo entre ambos uma infinidade de opressões naturalizadas, o céu seria o limite. Sabe deus o que entraria nesse "desde que".

Fechando todas as digressões nestas reflexões, rever a novela “Que Rei Sou Eu?” está sendo uma experiência de autoconhecimento que indico muito. Recomendo que revejam programas que viam quando crianças e quando adolescentes, observando suas respectivas influências sobre quem você se tornou. E quem sabe, acessando suas memórias mais antigas, você perceba que todos os atravessamentos das relações estabelecidas com a sociedade à sua volta – mostrada pela TV, pela Internet, pelas artes que você consumiu, pela sua família, pela sua escola, pela sua igreja – constituíram a forma com a qual você se posiciona frente ao mundo?

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