quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

Mídia, cultura do medo e segurança privada

Nesta madrugada um guia turístico, Daniel Mascarenhas, de 31 anos, foi assassinado a facadas no Centro do Rio, na Rua 20 de Abril, que fica entre o Campo de Santana e a Praça da Cruz Vermelha. Duas assaltantes o abordaram com um simulacro de arma de fogo e, após verificar tratar-se de uma arma falsa, a vítima reagiu tentado recuperar o celular que havia entregado às assaltantes. Na luta corporal, uma das assaltantes o esfaqueou cinco vezes causando-lhe hemorragia que o levou a óbito.

Alguns veículos de mídia tendenciosa, dessas que jorram sangue quando rasgamos uma das duas páginas, começaram a responsabilizar consumidores e apoiadores do camelódromo localizado na Rua Uruguaiana, sob o argumento de que são cúmplices de roubo de celular, que depois de roubados são vendidos ali sem qualquer fiscalização. Por sua lógica, se você compra celular em camelo, está necessariamente financiando o mercado ilegal que se mantém à custa de receptação (compra e venda de produtos oriundos de outros crimes).

Ah, pronto! Como não poderia deixar de ser, para esses veículos de mídia a serviço do capital, a culpa é sempre do pobre. Não importa o que aconteça, farão com que a responsabilidade recaia sobre as camadas menos favorecidas da sociedade. Não estou negando a relação de causa e efeito que existe entre furtos e roubos com a manutenção de comércio ilegal de produtos roubados ou furtados. Mas, antes, estou fazendo um convite para uma reflexão que deve ir além da superfície, revelando mais do que o fenômeno imediato observável. Primeiro, devemos recusar veementemente a tendência aporofóbica, que parece ser sempre o caminho mais curto e mais simples para solucionar um problema social. Por mais tentador que pareça culpar a pessoa com pouco dinheiro que se vê obrigada a consumir em mercado informal, é preciso ter em mente que quem mantém esse mercado é justamente a desigualdade socioeconômica promovida pela burguesia.

O capitalismo se expande quando se criam demandas para que o mercado seja movimentado. E não é necessariamente a demanda que cria a oferta, mas o contrário: oferta que cria a demanda. E neste caso, não estou dizendo que, por existir um camelódromo onde produtos oriundos de crime são comercializados, então existirá a demanda por estes produtos. Mas, de onde surge a necessidade do consumidor adquirir tal produto, a tal ponto que, se necessário, prefere financiar o mercado ilegal a adquiri-lo de forma regular?

Antes de responsabilizar o consumidor, o apoiador ou o mantenedor de um camelódromo que atenda às demandas de uma classe empobrecida, precisamos responsabilizar a criação dessas demandas. A propaganda de um produto é um dos fatores que geram no consumidor o desejo de tê-lo para si. Acontece que numa sociedade em que as riquezas são desigualmente distribuídas, há quem tenha meios de satisfazer a este desejo dentro das regras do comércio regular e há quem esteja alijado dessa possibilidade por não possuir recursos financeiros que lhes permitam comprar no mercado formal o bem de consumo desejado.

No entanto, vivemos numa sociedade que estimula o consumo quando legitima a existência da alguém por sua capacidade de ter. Se temos o tênis da moda, somos pessoas descoladas, que encontraremos acolhimento nesta sociedade. Estamos sendo bombardeados por propaganda por todos os lados. Vista isso, compre aquilo, fume essa marca de cigarro para ser chique, calce esse tênis para ser descolado, use este aparelho de celular para ser alguém. O desejo de pertencimento nos leva ao desejo de consumir. A pessoa pobre consome o que consegue e, em muitos casos, somente consegue adquirir um aparelho eletrônico em um mercado informal, como no camelódromo da Rua Uruguaiana.

Fica o questionamento. O camelódromo onde produtos roubados são vendidos é um incentivo à criminalidade ou seria esta incentivada pela propaganda que nos diz o tempo inteiro que somente somos quando temos? No sistema capitalista uma parcela da sociedade é excluída das relações por sua impossibilidade de consumo. São pessoas marginalizadas que não foram absorvidas pela sociedade, tornando-se um estorvo. São os indesejáveis, cuja gestão consiste em políticas de afastamento, seja pela sua remoção física para periferias urbanas, seja por políticas de extermínio que paulatinamente promovem a morte dessas pessoas, de fome, de doença ou por violência estatal, seja por encarceramento em estabelecimentos prisionais precários, onde serão confinados longe dos olhos da sociedade "de bem", a sociedade composta por aqueles que podem comprar e vender.

Os veículos de mídia que insistem em culpabilizar os mais pobres pelas mazelas inerentes ao capitalismo, e que fecham os olhos para a real estrutura que cria e mantém essas mazelas, prestam um serviço precioso para quem tem interesse em manter essa estrutura de desigualdade. Ao criar no imaginário dos leitores a ideia de que a culpa é sempre do pobre, esses jornais tendenciosos propagam a ideologia da classe dominante, que fecha os olhos para os reais responsáveis por esse ciclo de violência: a burguesia.

Para a classe detentora dos meios de produção, é necessário estimular o consumo através da mobilização do desejo de ter. E para essa mesma classe, a manutenção da violência urbana produz um novo mercado, o da segurança privada.

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