quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Anarquia relacional

Ainda nesta semana, conversando com meu terapeuta, comentei sobre a dificuldade de explicar à maior parte das pessoas o que eu considero um relacionamento ideal. E que um dos empecilhos para que eu consiga estabelecer esse tipo de comunicação é justamente a utilização das categorias disponíveis no pensamento hegemônico acerca de como são construídas as relações o e têm como padrão o sistema monogâmico: o que define um namoro como namoro? O que define uma amizade como amizade? Parceria e lealdade? Presença ou ausência do sexo? E como diferenciar, então, uma amizade colorida e um namoro, se o sexo, o companheirismo, a confiança e parceria podem perfeitamente estar presentes em ambas as formas de relações?

Disse-lhe que quando tento descrever para as pessoas o tipo de relacionamento que para mim seria ideal costumo receber de volta sentenças do tipo: "então você não quer namorar, você quer fazer pegação" ou "para esse tipo de relacionamento, o melhor é estar solteiro".

Como não consigo descrever às pessoas o tipo de relacionamento que faz sentido para mim sem utilizar categorias prontas e determinadas, acabo tentando, por aproximação, fazer uso dos conceitos existentes no sistema dominante monogâmico, binário e limitador: "namoro", "casamento", "amizade", etc. Porém, quando falo "namoro", automaticamente meu interlocutor cria uma lista de requisitos que supostamente estabelecem o que seria um namoro para ele. Por desconhecer categorias dentro de um sistema de relacionamentos que eu entendo como ideal para que possa lhe descrever, e como tento apenas utilizar as já existentes para tentar ser didático, a imprecisão terminológica gera uma falha na comunicação. E invariavelmente a mensagem que eu pretendo comunicar não apresenta clareza. O mais próximo que consegui chegar foi "uma rede de apoio, sem hierarquia de afetos, pautada não no nome ou no rótulo que se dá à relação, mas aos sentimentos que se nutrem entre os envolvidos".

"Ah, Guto, isso para mim é suruba!"

"Isso é um desvio pequeno-burguês!"

"Então, isso que você quer é ser solteiro!"

Aí, eu desisto de tentar explicar. Nesta semana fui apresentado ao conceito de "anarquia relacional" e parece que uma grande porta se abriu na minha cabeça: acho que encontrei quem consiga me entender.

Para mim, é importante me encontrar nessas comunidades, porque eu já notei que os rótulos que uso não se sustentam na materialidade das relações que tento construir. Ou talvez a materialidade das relações não cabem nos rótulos que acabo usando. O que isso acarreta? Faz com que eu entre em relações que não duram mais que um ano, um ano e meio, porque no meio dela começo a ficar insatisfeito. E ainda saio como afetivamente irresponsável porque ainda bagunço o sentimento das pessoas que criam expectativas pautadas nas definições dadas tomando-se a monogamia por padrão.

Para entrar numa relação, percebo que estou sempre negociando com a sociedade para me fazer caber nela. Não falo nem dos acordo com a(s) pessoa(s) com quem me relaciono, falo de uma espécie de negociação que precede as relações. É como se eu já tivesse que reprimir a mera possibilidade de vivenciar meus desejos para tornar possível a chance de me relacionar. Afinal, existe um sistema de normas que determina como se deve relacionar, determinando o que é ou não legítimo, aceitável e moral. Então, se eu não me enquadrar nesse sistema, devo aceitar a solidão como destino, dado que ao longo das minhas relações, nunca encontrei quem compartilhasse dessas mesmas ideias contra-hegemônicas. É aí que eu negocio: abro mão de parcela dos meus desejos em troca da possibilidade de construir uma relação.

Um amigo meu uma vez me disse que constantemente se vê obrigado a trocar masculinidade por afeto. Ele se vê como uma pessoa afeminada que precisa se ocultar por trás de uma masculinidade que não possui e sequer tem interesse em possuir, para que consiga abrir a possibilidade de se relacionar. Com isso, deixa de se expressar no mundo com a feminilidade com a qual se enxerga e que gostaria de poder performar. Limita seu vestuário, limita a disposição dos seus pelos corporais, limita o uso de acessórios e penduricalhos, modula a voz, esconde as mãos... Parece um pouco com o que sinto: estou sempre negociando meus próprios desejos por afeto. E não se iludam, muito do que se chama hoje de "relacionamento aberto" traz tantas castrações de desejos, senão mais, do que as relações tidas como tradicionais.

"Tudo bem, nossa relação é aberta, mas não podemos ficar com ex".

"Somos um trisal, mas só podemos interagir se estivermos os três juntos, nunca com um só".

"Pode ficar com quem quiser, mas não pode se envolver emocionalmente".

"Não pode sexta-feira porque é o nosso dia. Mesmo que não possamos nos ver".

E no fim, das duas uma: ou eu escolho me afastar de todo mundo que pensa dentro dessa caixinha de regras e aceito a solidão como destino por não conhecer quem pensa parecido comigo ou me vejo limitando meus desejos para me encaixar numa relação que depois de um ano, um ano e meio, me enche o saco e eu pulo fora. Por isso foi um tanto libertador conhecer esse conceito de "anarquia relacional". E não é um conceito novo: o Manifesto da Anarquia Relacional mencionado no texto que postei anteriormente foi escrito em 2006.

E vejam, quando falo de desejos reprimidos, não é só sobre sexo. É prazer, mas não necessariamente sexual. É também ter que justificar o fato de querer ficar sozinho hoje, ter que justificar porque vou para a praia com amigos e não com a pessoa que está comigo, porque fui beber na Lapa e não fui pra casa do namorado, ter que explicar porque começar uma amizade depois de estar num namoro, já que até então eu só tinha amizade com X e Y, então "tá muito estranho você se aproximar assim de alguém". É um saco! Deixamos de ser donos do nosso próprio corpo para torná-lo domínio do outro, que tem sobre nosso prazer a chave para abrir ou fechar de acordo com a sua vontade — que é uma imposição por um sistema de regras sobre como devemos sentir — e não mais com a nossa própria liberdade sobre nosso próprio corpo. "Meu corpo minhas regras" vira uma frase vazia e hipócrita diante do fato de que meu corpo passa a ser obrigado a regras impostas socialmente quando somos orientados acerca do que podemos ou não podemos sentir.

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