domingo, 20 de agosto de 2023

O Ódio

O ÓDIO

Não existe imparcialidade porque toda ideologia surge de um ponto de partida. Há sempre uma premissa sustentando uma ideologia. Paulo Freire parte dessa mesma ideia quando lança o questionamento sobre sua ideologia ser excludente ou inclusiva.

Meu ponto de partida é que a nenhum ser humano deveria ser negada a possibilidade de existência digna e igualitária em condições, deveres e direitos, independentemente de raça, gênero, orientação sexual, local de nascimento e quaisquer condições inerentes à sua existência plena. Esta é a base sobre a qual repousa minha visão de mundo e a partir da qual se constitui todo o meu sistema de crenças e pensamentos que alimentam meus desejos e determinam minhas ações.

A partir dessa premissa, irei me opor a toda ideia que a subverta, e não vejo nenhuma contradição entre meu ponto de partida e meu desejo de eliminação de quem a ele se opõe. Isso porque a igualdade existencial é meu ponto primordial, o ponto antes do qual não existe pensamento que eu possa direcionar a um fim. Tudo que surge, surge a partir da minha premissa. Não é diferente com a relação de opressão.

O opressor é aquele que subverte minha noção de igualdade primordial – de que todos deveriam existir dignamente independentemente de quaisquer de suas características – hierarquizando existências e criando desequilíbrio. Como ameaça à ordem de onde parte a ideologia que compartilho, o fascista é um dos alvos do meu ódio, o sentimento legítimo que devo nutrir direcionando-o a quem ameaça a possibilidade de todas as pessoas existirem plenamente.

Eliminar o fascista não necessariamente pressupõe a eliminação física daquela pessoa, mas sim a eliminação do fascismo de dentro de si. No entanto, são as condições materiais que determinam as práticas e, se não houver possibilidade de obter o resultado almejado, então que a extinção do fascismo se dê pela eliminação do fascista. Há quem julgue negativamente esse ódio. Quem o faz, parte de qual premissa?

sábado, 19 de agosto de 2023

O Sistema Fechado do Estado

O Estado é um sistema fechado que suprime as possibilidades de questionar sua própria ordem, estabelecida de cima para baixo ao sabor dos interesses da classe dirigente. Para isto, conta com o direito penal como um das suas as colunas de sustentação: para manter seus interesses escusos, criminaliza condutas.

Pelo mecanismo da tipificação de apologia ao crime, em si mesmo, como um ilícito penal (artigo 287 do código penal), retira do cidadão a possibilidade de levantar debates públicos acerca da defesa de determinadas condutas tipificadas como criminosas. Assim, impede ou retarda que a sociedade possa debater questões como, por exemplo, descriminalização das drogas ou direito ao aborto: haverá sempre a brecha que torna possível enquadrar como apologia ao crime a defesa pública do aborto como um direito ou da legalização da maconha.

Da mesma forma, para valer suas determinações, o Estado blinda seus agentes através da tipificação da conduta chamada de desacato à autoridade pelo artigo 331 do mesmo código. Com isso, o mero questionamento e o enfrentamento aos abusos praticados por uma suposta "autoridade" – o funcionário público – facilmente pode ser impedido com o silenciamento do cidadão indignado, que por manifestar sua indignação poderá ser enquadrado pelo crime de desacato.

E numa esfera estrutural, prevê como crime a tentativa de abolir o estado democrático de direitos, o que põe movimentos revolucionários na condição de agentes a serem penalmente perseguidos e criminalmente responsabilizados pela ordem posta.

Tudo fica amarradinho para impedir qualquer movimento de subversão à ordem estatal, tanto numa esfera micro quanto numa esfera macrocósmica.

segunda-feira, 14 de agosto de 2023

Racismo microempreendedor

Na minha bolha progressista, já é relativamente corriqueiro problematizarmos os rolês em que pessoas brancas ocupam o lugar do público que se diverte enquanto pessoas pretas ocupam o lugar de quem as serve. Mas, e quando o rolê tem gente branca se divertindo e também servindo, dá pra problematizar?

A pergunta que fica é: quão excludente é um rolê em que, mesmo numa sociedade racista que insiste em colocar a população negra na posição de subalternidade, não encontramos pessoas negras em número significativo nem mesmo entre os trabalhadores?

Minha hipótese, tomando por premissa a exclusão da população negra e evidenciando sua colocação em lugar de precariedade econômica, é a seguinte: o rolê é uma feira, organizada numa espécie cooperativa entre pequenos produtores e pequenos empreendedores. Até aí, louvável.

Acontece que só empreende quem tem capital para investir. E como o espaço é de microempreendimento, os proprietários, via de regra, são os mesmos que fabricam, que atendem, são os contadores, são os administradores dos próprios negócios, enfim, assumem a totalidade das atividades, razão pela qual são as pessoas que estão trabalhando na feira.

E aqui reside o problema: se o micro e pequeno produtor e empreendedor é a pessoa branca que está servindo, mas que tem capital para investir em um negócio, quanto da parcela negra da população tem um capital, ainda que pequeno para investir? E a outra pergunta, meramente retórica, é: quais as dinâmicas de acumulação de capital e do racismo que afastam a população negra da possibilidade de ter algum dinheiro para investir?

terça-feira, 8 de agosto de 2023

"Vive para o trabalho e não vê o crescimento dos filhos."

"Ain, vive para o trabalho e não vê o crescimento dos filhos."

E você engole esse discurso sentindo-se culpada porque tem que trabalhar para sustentar os filhos cujo crescimento não pode ver. Essa culpa serve a quem? Adivinha! Carregando nas costas a responsabilidade porque o sistema te impõe a obrigação de ser mãe ao mesmo tempo que te impõe a obrigação de trabalhar, sua culpa atende aos interesses de quem organiza esse sistema. Mesmo papo de responsabilizar o indivíduo por uma questão social. Desmobiliza lutas para transformar a coletividade e mantém intactos os verdadeiros culpados, a classe dirigente da sociedade. É por isso que creches públicas são uma demanda dos comunistas. Mobilize-se na luta e venha ser comunista também.

quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Cautelas

Dia desses, estávamos num rolê em grupo de amigos. Na hora de ir embora, uma das amigas presentes estava bêbada, não exatamente inconsciente ou desacordada, mas em algum nível vulnerável, e ia chamar um Uber para casa, trajeto que faria sozinha. Eu e outro dos rapazes presentes íamos embora juntos, num trajeto que não era caminho para o da moça, mas que também não seria um grande desvio. Imediatamente sugeri que compartilhássemos uma mesma corrida, com dois destinos, já que levá-la conosco não era uma opção por razões diversas que não vêm ao caso mencionar. Minha preocupação era a de que ela não ficasse sozinha no carro com o motorista. O ideal seria deixá-la em sua casa e retornarmos para nosso destino, que estava bem antes do dela. Isso, porém, faria a corrida triplicar de preço e estava todo mundo sem grana. Simulamos o preço de nos deixar em nosso destino e prosseguir a viagem com ela e alguém argumentou:

— Em algum momento ela ficará sozinha com o motorista no carro. Melhor que cada um faça sua corrida independentemente da outra, e vai sair mais barato do que vocês dividirem um mesmo carro.

De fato, se chamássemos dois carros, um para ela e outro para nós, a soma das duas corridas seria menor que o preço de uma só viagem com duas paradas. Quase cedemos ao argumento, mas insisti que não achava bacana deixá-la sozinha desde o começo da viagem. A diferença, se chamássemos um só carro para os dois destinos era pouco menos de dez reais. E assim fizemos.

Durante todo o trajeto, eu, que parecia ser o único "meio sóbrio" dentro do carro (além do motorista, claro), dei um jeito de inserir na conversa duas ou três vezes, falas sobre como ficaríamos de olho no trajeto dela até que ela chegasse em casa. Era para o motorista ouvir. Ao descermos do Uber, despedimos-nos dela e eu repeti em alto e bom som "chegue bem, vou ficar acompanhando o trajeto do Uber por aqui". O motorista ouviu. A viagem dela correu sem transtornos, e tudo terminou bem.

Dias depois, essa história virou como assunto numa conversa e novamente foi levantada a questão sobre o porquê termos optado por pagar um pouco mais caro numa corrida com dois destinos já que, ao final, a moça do grupo seguiria sozinha de qualquer forma. Minha resposta foi:

— Se um motorista pega uma passageira sozinha numa balada, ele não sabe se ela tem ou não uma rede de apoio e proteção e, presumindo que ela não tenha, pode se sentir mais confortável para abusar dela, na certeza da impunidade. Por outro lado, mesmo que ela siga viagem sozinha, depois de tê-la visto na companhia de dois homens, o motorista talvez não tenha a mesma sensação de impunidade e não se sinta confortável para praticar qualquer tipo de abuso. Não foi à toa que eu fiz questão de repetir que seguiria monitorando a viagem. O recado não era para ela, mas para o motorista. Isso asseguraria sua segurança? Não. Uma mulher nunca tem garantia de segurança numa sociedade machista e patriarcal. Mas, de alguma forma, dadas as circunstâncias, o simples fato de saber que aquela moça estava acompanhada de dois caras que estariam monitorando seu trajeto poderia ser uma potencial forma de reduzir os riscos.

terça-feira, 1 de agosto de 2023

Sua empatia é um projeto político

Um latifundiário pecuarista e seu filho pegam um avião particular para comprar pizza, caem e morrem. A viúva se suicida. Jovem ainda. Branca, parecia uma Barbie. Dizem também que foi assassinada para que não herdasse os bens deixados pelo fazendeiro cadente.

Quase na mesma semana, uma mulher trans, técnica de enfermagem, é assassinada a facadas em Belford Roxo, cidade da Baixada Fluminense. No Guarujá, poucos dias depois, uma chacina de pessoas faveladas e pretas é praticada por 600 policiais a mando do governador fascista. Estimam que 19 favelados pretos tenham sido assassinados nessa tragédia.

Nunca conheci um latifundiário. Não conheço ninguém que tenha um avião em casa. No meu círculo de amizades, é impensável imaginar alguém indo ali comprar pizza tirando um avião da garagem. Por outro lado, conheço muitas mulheres trans. Técnicas de enfermagem então, poderia indicar duzias, tal a quantidade que conheço. O que não falta dentre as pessoas próximas são faveladas e pretas, não necessariamente acumulando os dois recortes sociais.

Quando falamos que a ideologia hegemônica é a ideologia da classe dominante, um exemplo inequívoco disso é ver a quantidade de pessoas à minha chocadas, falando sobre e engajando o caso da família latifundiária branca (e nem sequer parando para se perguntar quantos indígenas yanomami ou guarani kaiowá foram assassinados para que essa família juntasse tantos hectares de terra). Gente que está mais perto de ser morta pela policia por conta do endereço onde mora ou da cor da sua pele. Gente que nem consegue pedir pizza pelo celular depois do dia 20 porque o dinheiro acabou. Gente que é técnica de enfermagem. Gente que é trans. Gente que não é nada disso, mas que na escala está bem mais distante dos milionários que compram pizza de avião do que dos moleques da favela que a polícia do Tarcísio assassinou. Adivinha com quem elas se identificam.