segunda-feira, 31 de julho de 2023

"Seja como a água..."

"A água desvia dos obstáculos e segue em frente. Seja como a água." O cidadão medíocre lê esse tipo de analogia barata e aplaude. Além de comparar o ser humano explorado a um rio — a despeito da total ausência de elementos de comparação em suas respectivas naturezas — o cidadão medíocre também vibra com a analogia rasa que equipara uma pessoa a um arbusto, numa dessas frases desmobilizadoras de coaching, do tipo "o galho fino recebe vento e dobra, mas não quebra. Seja então como o galho fino...". Tem a pior de todas, que compara o trabalhador com uma flecha, e diz que está tudo ok se a vida do sujeito andar para trás, afinal "uma flecha é puxada para trás antes de percorrer seu trajeto". Olha, sinceramente...

Ué, Guto, por que você diz que o sujeito comparado nas analogias rasas e batatas dos exemplos são trabalhadores explorados?

Justamente por causa da mensagem, meu bem. Esse tipo de frase motivacional traz sempre uma ideia de resignação, de aceitação da derrota ou da fraqueza como um prenúncio da consagração. A flecha é puxada pra trás? Então, tá beleza você estar numa vida de merda em que tudo parece retroceder, você vive cansado, você vive sem dinheiro, você vive ansioso e deprimido, mas assim como a flecha, essa é o hall de entrada para o vôo certeiro para o Seu Destino Feliz, assim como a flecha que atingiu o alvo. É uma forçada de barra constrangedora para comparar o incomparável, né? A da árvore? Você é o galho fino, o sujeito franzino, que vive na precariedade de quem nunca irá experimentar a sensação de perder toda sua fortuna, já que você nunca teve. O galho é fino e sacode pra lá e pra cá igualzinho a vida do trabalhador que tem que se sacudir pra lá e pra cá pra sobreviver nesse mundo cão comandado pelo capital. Mas, tão fino o faz flexível a ponto de dobrar e não quebrar. Igualzinho o entregador de aplicativo que não tem direito trabalhista algum assegurado, mas "não quebra" porque sempre arranja trabalho.

O que me deixa puto é que o cidadão medíocre consegue comparar o trabalhador explorado até com o Sol, "que todo dia se levanta pra brilhar", para justificar o fato do coitado ter que pular da cama ainda no escuro para pegar o trem lotado e levar três horas para chegar ao trabalho. Agora, experimenta falar para o cidadão medíocre que o trabalhador pode tomar o poder político, pra você ver o tanto de desculpa que ele vai usar para dizer que isso é impossível. Para o cidadão medíocre, eficaz mesmo é achar lindo te comparar a uma ostra, porque a ostra produz a pérola a partir de grão de areia, que lhe causa um sofrimento", para você seguir aguentando sua vida fodida sem reclamar, acreditando que ao fim do seu sofrimento você terá sua própria pérola, quase como uma dádiva da natureza, como se suas conquistas sociais caíssem do céu em vez de serem conquistadas com luta.

domingo, 30 de julho de 2023

A esquerda e os algoritmos para a direita

Acabei de ver três postagens seguidas de três diferentes grupos de extrema direita dos quais, por motivos óbvios, eu não faço parte e que eu preferiria não ter visto.

As três apareceram para mim porque três pessoas de esquerda foram lá comentar, engajando seu conteúdo. Da mesma forma que apareceu para mim, pode ter aparecido para outras pessoas que se interessam pela direita ou que sejam por ela cooptados porque somente tiveram acesso ao seu conteúdo.

Enquanto isso, esquerdistas se furtam de levantar discussões sobre radicalização, sobre teoria revolucionária, e se mostram tão pouco interessados em promover seus próprios debates e engajar seus propósitos conteúdos.

Preferem, em vez disso, dar visibilidade à extrema direita, para depois suspirarem derrotados, dizendo que não vêem esperança em teoria socialista, comunismo, marxismo-leninismo, e aceitando o atual estado das coisas, sob o argumento de que falar em revolução é utopia. Com esses representantes esquerdistas que diariamente promovem a extrema direita facilitando o alcance dos seus conteúdos, realmente fica impossível pavimentar qualquer caminho que possa conduzir a uma transformação nas bases da sociedade.

Temos a esquerda que a extrema direita ama. Parabéns aos envolvidos.

segunda-feira, 24 de julho de 2023

Sua liberdade não é irrestrita

"Ain eu defendo pluralidade de ideias e liberdade para qualquer um pensar qualquer coisa."

Eu também defendo, meu bem. Desde que essa diversidade de pensamentos proporcione igualdade de oportunidades e de direitos. Do contrário, se sua pluralidade servir apenas para manter o estado das coisas como estão, quero que exploda. Então, antes de defender a liberdade de X ou de Y, pergunto se essa liberdade pretende mudar o mundo para que uma pessoa jamais seja comprada por outra em qualquer instância que seja. Se a resposta for negativa, não há liberdade alguma sendo defendida, mas uma simulação dela, uma espécie de programa criado para rodar dentro de um determinado sistema. Sua liberdade para construir uma mansão no The Sims não significa nada enquanto ainda houver quem passe fome na vida real.

Sozinhe onde?

"Ain, tudo que consegui, consegui sozinho, sem ajuda de ninguém, só com meu esforço."

Meu bem, quando você nasceu alguém te pegou no colo, te limpou, te vestiu e te alimentou. VOCÊ RECEBE AJUDA DESDE QUE VEIO AO MUNDO e nunca obteve nada, ABSOLUTAMENTE NADA, sem a interferência de outrem. Esse discurso do "consegui sozinho" é uma grande mentira que serve à ideologia da burguesia para afastar trabalhadores uns dos outros e impedir um levante revolucionário pela tomada do poder. Fizeram você acreditar que não depende de ninguém para que você não perceba que a natureza humana, se houver uma, É COLABORATIVA, E NÃO COMPETITIVA. Você não odeia a humanidade, você odeia o ser humano produzido pelo capitalismo.

domingo, 16 de julho de 2023

Rótulos

Dica para a vida: primeiro as relações se constituem em sua materialidade. Depois você pensa se elas precisam de um nome. Combinado? Não há de quê!

"Ain, fez isso para Fulane e nunca fez para mim, que sou sue namorade!"

Exatamente, amiguinhe! Com Fulane há uma relação que se configura por essas e aquelas atitudes. Com você há outra relação que se configura pelo que vocês fazem juntes. Os nomes dessas relações são o que menos importam. Larga de ser insuportável e querer enquadrar a vida real num conceito abstrato de "namoro", ou de "amizade", ou de "casamento", idealizado na sua cabeça. A vida material é muito mais dinâmica e complexa do que abstrações ficcionais que não encontram correspondência na realidade.

quinta-feira, 13 de julho de 2023

Politicas públicas são importantes, mas não são o suficiente

Sim, é importante pensarmos em políticas públicas, haja vista que situações de precarização da existência demandam medidas urgentes em uma coletividade não organizada em uma luta emancipatória, como a sociedade brasileira atual. Quem tem fome tem pressa e toda medida que minimize impactos negativos sobre a classe trabalhadora será melhor que medida nenhuma.

Mais importante que políticas públicas, porém, é pensar para além delas. É pensar na transformação das condições materiais que tornam necessárias as políticas públicas. É o combate à causa e não ao sintoma.

Mais importante que minimizar as desigualdades através da distribuição de auxílios emergenciais é transformar a realidade que cria as desigualdades, a fim de tornar obsoleta qualquer política de redistribuição de renda.

Existe um sistema de produção inventado pela humanidade (e, portanto, não é dado pela natureza) que organiza a sociedade criando desigualdade a partir da acumulação de riquezas por uns poucos privilegiados que exploram a massa desprivilegiada. Para funcionar, precisa da fragmentação das massas em grupos minorizados para serem oprimidos e explorados.

É importante criar políticas de cotas para pessoas negras em universidades, claro. No entanto, em uma avaliação estrutural, percebe-se que se trata de enxugar gelo quando o Estado põe pessoas negras nas universidades ao mesmo tempo em que as põe nas miras dos fuzis da polícia, o braço armado desse mesmo Estado!

Que bom que haja lei concedendo licença maternidade para mulheres, e melhor seria se novas políticas aumentassem o tempo de duração dessa licença, ninguém há de negar (exceto o patrão, e quem se importa com o patrão?). Mas, essas políticas seriam desnecessárias se não reproduzíssemos uma cultura que insiste em manter a mulher como responsável pelas tarefas domésticas.

Mais eficaz seria uma regulamentação na mídia para vedar a reprodução de estereótipos femininos pautados numa desigualdade de gênero deliberadamente produzida para limitar a mulher ao ambiente doméstico; aliando-se a isto mecanismos de fomento à permanência feminina no mercado de trabalho, a criação de creches para que as crianças permanecessem, em que homens e mulheres atuassem igualmente nas atividades de cuidado das crianças.

Evidente que ninguém com bom senso criticaria a adoção de políticas públicas de incentivo à empregabilidade trans, diante da vulnerabilidade social em que este grupo de pessoas é colocado pela classe dirigente da sociedade. Ou à criminalização da transfobia. Mas, sem a escola ensinar educação sexual, orientando as crianças e adolescentes ao entendimento de diversidade de corpos, de identidades e de sexualidades, haverá apenas um ciclo infinito que cria gerações de pessoas que ignoram a existência de corpos "dissidentes" e que depois de adultos praticam a intolerância, perpetuando a violência e, quando punidos, lotam presídios (e sabemos bem o recorte socioeconômico de quem serão os punidos).

Precisamos pensar sempre além. Políticas públicas são relevantes, mas de nada adiantam quando o Estado Pós-Democrático move esforços para torná-las ineficazes. Há quem ainda se iluda com a lenda urbana do Estado Democrático de Direitos? Então, pensemos nas políticas de Estado hoje, sem perdemos jamais de vista que o objetivo deverá ser sempre a destruição deste Estado. Porque ele é quem produz as violências e desigualdades contra as quais criará políticas de enfrentamento eternamente incapazes de erradicá-las.

sábado, 8 de julho de 2023

O sistema que nos obriga à hipocrisia

"Guto, você não se sente incomodado, sendo um homem cis branco que atua com direitos de pessoas LGBTQIAPN+, ocupando uma vaga que poderia ser de uma travesti negra?"

É óbvio que sim! É por isso que eu sou comunista. Para transformar a sociedade capitalista e concorrencial em uma sociedade em que não tenhamos que lutar com unhas de dentes para sobrevivermos. Eu preciso pagar contas também. Sem um trabalho que me garanta um salário no fim do mês, eu morro de fome, vou para as ruas. Tenho aluguel para bancar e mercado para fazer.

O capitalismo é um sistema que nos transforma todes em concorrentes uns dos outres. Para permitir a exploração, no capitalismo há sempre menos vagas de trabalho do que pessoas para ocupá-las. É por isso que quando você reclama do seu emprego, seu chefe abusador lhe diz que se você estiver insatisfeite, peça as contas, porque "lá fora tem muita gente querendo a sua vaga". É ou não é assim?

Então agora chega aqui pra eu te contar um segredinho, um choque de realidade que vai explodir a sua mente: o simples fato de você estar ocupando uma vaga qualquer de trabalho te põe na condição de alguém que está impedindo uma família de se alimentar. Alguém morreu de fome porque você ocupou uma vaga de trabalho que outra pessoa não ocupou. Cruel, né? E você não se culpa pelo fato de que neste momento uma criança está morrendo de fome porque você está ganhando um salário enquanto a mãe da criança não, justamente por você ter ocupado a vaga de alguém que ficou sem emprego por isso? Pois é. O sistema é cruel e foi feito para nos obrigar a sermos cruéis juntes. Eu não me culpo. E eu espero de fato que você também não abrace esta culpa. Ah, e o capitalismo também tira proveito da sua culpa, tá? Quando você se responsabiliza, você deixa de responsabilizar quem, de fato, deveria: a burguesia.

Culpa eu não carrego. Mas, eu me incomodo — e muito! — e também gostaria que você se incomodasse. Porque quem cria este sistema que me põe na condição de usurpador da vaga de uma travesti preta e periférica é a burguesia, a classe dirigente da sociedade, que estabelece a forma como ela se organiza. Então, se a gente espera que nenhuma mãe veja seu filho morrer de fome porque você roubou sua vaga no mercado, ou que nenhuma travesti tenha que se prostituir porque eu ocupei uma vaga que deveria ser sua, precisamos combater quem mantém de pé este sistema. Não há capitalismo humanizado. Você sempre estará roubando a oportunidade de alguém porque você também precisa sobreviver, enquanto o trabalho for organizado da forma que nossa sociedade o organiza. É preciso destruir este sistema. É preciso odiar a burguesia. É preciso revolucionar a sociedade. Culpa eu não carrego, mas carrego ódio de classe.

Representatividade que perpetua sistema opressor é inócua

Enquanto ativista LGBTQIAPN+ entendo a importância de ter pessoas LGBTQIAPN+ ocupando espaços de poder e destaque na nossa sociedade, como a mídia, o judiciário ou política, por exemplo.

Enquanto comunista, porém, entendo que mais importante que pessoas LGBTQIAPN+ nesses espaços é a destruição desses espaços. Tratam-se de espaços de perpetuação da opressão e da exploração, uma vez que reproduzem a ideologia dominante e mantêm a ordem estabelecida, pautada na desigualdade. Dessa forma, pouca será a valia de termos pessoas LGBTQIAPN+ ocupando espaços de opressão, reproduzindo uma lógica não libertadora, apenas trocando o papel do oprimido pelo do opressor.

O horizonte deverá ser sempre a destruição da atual estrutura e a construção de novas, pautadas na dignidade humana material e concreta, em que todas as pessoas possam coexistir em paz e em sua plenitude, e nas quais não caibam ideias e práticas discriminatórias de pessoas em razão das suas identidades de gênero e orientação sexual.

O mesmo vale para pessoas negras. Para mulheres. Para todos os grupos minorizados e oprimidos. Não se pode descolar as pautas antiopressão da luta de classes. Enquanto comunistas, nossa trilha deverá sempre conduzir à revolução socialista. Não conseguiremos chegar lá enquanto pessoas forem segregadas em razão da suas suas identidades de gênero, das suas orientações sexuais, dos seus sexos, das cores das suas peles. E menos ainda conseguiremos chegar lá enquanto nosso sonho de oprimidos for o de que um dia ocupemos os lugares dos opressores.

sábado, 1 de julho de 2023

Medicalização da vida

Fizeram você acreditar que adoecimento psíquico é uma questão do meramente bioquímica. Disseram "é falta de serotonina", "é falta de endorfina". Fizeram, com isso, você acreditar que depressão, ansiedade, TDAH, borderline podem ser tratados com medicamentos, para suprir uma carência de uma ou outra substância. Fazem isso não apenas para você comprar remédios e enriquecer a indústria farmacêutica. Mas, também para que você não questione os motivos sociais que levam o corpo a parar de produzir endorfina ou serotonina. É mais conveniente para os dirigentes da sociedade que você assuma para si a responsabilidade sobre a sua saúde mental e trate com remédios do que questionar o quanto suas condições existenciais geram seu adoecimento.