sexta-feira, 17 de março de 2023

O cão e a dor

O cão e a dor

Quando te morde o velho cão
Que de maus tratos sobrevive
Quem te pode julgar se o enxotas
Quando a dor não mais suportas
Da ferida que na tua mão se abre?

Não tem o cão um juízo
Do sangue que de ti faz jorrar
Nas carnes que em ti dilacera.
Não é raiva o mal do cão, tu bem sabes,
Mas, sua defesa do medo da vida.

E quem te pode então julgar,
Se o cão te ti ganha um afago,
Mesmo que em tua mão ainda lateje
O inchaço da tua pele rasgada?

Mas, se tens tu medo também
Do cachorro aproximar-te,
Quem te pode julgar se dele foges,
Ainda que tenhas ciência
De que ao cão o amor faltou?

Segues tu num dilema cruel:
Se carregas para ti o cão,
Dá-lhe abrigo e acolhida,
Ou se dele tomas distância,
Evitando assim a mordida,
Que doerá novamente amanhã.

Gustavo Carneiro de Oliveira

Rio, 17/03/2023.

quarta-feira, 15 de março de 2023

A sociedade que matou Paulo Vaz

Ontem, diversos portais voltados ao público LGBTQIA+ noticiaram a morte do influenciador Paulo Vaz, homem trans gay, policial civil, marido de outro influenciador, Pedro HMC, com quem era casado em uma relação aberta. O esposo não se manifestou publicamente acerca do ocorrido, mas rumores apontam para suicídio.

Há dois dias, teria vazado na conta do próprio Pedro HMC, um vídeo íntimo no qual estaria praticando sexo oral em um ator pornô. Imediatamente após a divulgação das imagens, que permaneceu no ar por meia hora antes de ter sido deletada, Paulo Vaz passou a ser bombardeado por comentários transfóbicos, do tipo "o marido foi chupar na rua o que não encontrou em casa", apenas para mencionar um.

Os rumores apontam que Paulo, que já havia falado publicamente sobre depressão e que, no último story postado em sua conta no Instagram havia chamado atenção para o tema saúde mental, teria se suicidado após os comentários dos seus odiadores. Prefiro usar a expressão em português em vez do seu correspondente em inglês, haters, para ficar evidenciado que o discurso dessas pessoas é ódio.

Não causa exatamente surpresa que o discurso de ódio que supostamente matou Paulo, ou Popo Vaz, como era conhecido publicamente, foi em grande parte proferido por homens gays. É, amiguinhos, assim como pessoas negras reproduzem racismo e mulheres reproduzem machismo, pessoas LGBT reproduzem homofobia, bifobia, transfobia e outras formas de discurso de ódio. E isso não surpreende. Não seria a primeira vez que parcela da "comunidade gay" estaria apagando pautas de pessoas trans, segregando em vez de agregar. Quem não conhece a história das ativistas Marsha P. Johnson e Silvia Rivera e o apagamento da luta de travestis e transexuais negras por homens gays brancos deveria conhecer.

Não gosto de generalizações e acho bastante problemático devolver ódio à chamada "comunidade gay". Pessoas gays já sofrem opressão por todos os lados, e mesmo assim tenho visto muitos gays dizendo que a "comunidade gay" matou Popo Vaz.

Como eu já disse, não surpreende que homens gays reproduzam discurso de ódio, mas é preciso fazer os devidos recortes dos marcadores sociais e apontar que quando chamamos de "comunidade gay" o grupo de sabotadores dentro da própria comunidade, estamos atirando no próprio pé, fazendo com que os olhares de quem está de fora se voltem contra todo um grupo.

Fazer os devidos recortes é necessário para que paremos que dizer que a "comunidade gay" matou Popo Vaz e possamos nos perguntar quem são os homens gays dentro da comunidade, responsáveis por replicar transfobia na internet. Com isso, então, identificando os responsáveis e responsabilizando-os, poderemos focar em estratégias de combate ao discurso de ódio.

E isso começa por analisar nosso próprio olhar dentro da comunidade. Popo Vaz tinha passabilidade cis, era branco, e estava devidamente inserido na sociedade de consumo. Tinha uma legião de admiradores e, mesmo gozando de um lugar "privilegiado" — entre aspas, porque não dá para falar exatamente em privilégio quando falamos de alguém limitado pelas fronteiras de um grupo marginalizado e inferiorizado do qual faz parte, que, no caso, é o das pessoas trans — foi alvo do ódio vomitado por pessoas cisgêneras e falocêntricas. Aqui, cabe um questionamento que por si só já vale um outro texto: estamos olhando para pessoas trans pretas e periféricas com a mesma empatia com a qual olhamos Popo Vaz? Pergunta retórica. A resposta todos sabemos.

Diversidade é para ser levada a sério. E ser aberto às diversidades não é apenas acolher o homem gay, cisgênero, branco, de corpo padrão, com poder de consumo. Não é somente lamentar a morte do homem trans branco, com passabilidade cisgênera e beleza de padrão eurocêntrico.

Acolher a diversidade é combater o falocentrismo que aparentemente motivou o suposto suicídio de Paulo Vaz, mas também, e sobretudo, lembrar que esse falocentrismo mata ainda homens trans pretos nas periferias, assim como o machismo também mata travestis e mulheres trans e o racismo também mata mulheres e homens trans negros.

Se não estivermos atentos ao nosso próprio olhar e nosso próprio discurso, talvez até possamos estar com a consciência tranquila por não sermos indiretamente responsáveis pela morte de Popo Vaz. Mas, será que poderemos nos isentar de outras mortes quando o racismo, o machismo e a homofobia que reproduzimos apagaram a transfobia que tornamos invisível com o filtro do nosso olhar seletivo?

domingo, 12 de março de 2023

Che Guevara homofóbico?

"Ain, mas Che Guevara era homofóbico e matava gays", diz a pessoa para defender o capitalismo, que só no Brasil assassinou nos últimos 15 anos uma pessoa LGBT a cada 29 horas.

Em tempo, Che Guevara nunca matou uma pessoa por ser gay. Isso é invencionice da própria ideologia do capital para disseminação de propaganda anticomunista. Considerando que a medicina — ciência produzida na sociedade capitalista à época — dizia que a homossexualidade era uma doença, Che, como médico recomendava os protocolos que a própria medicina — capitalista, vou repetir — orientava: internação compulsória e terapia.

Considerando que a medicina — capitalista — tratou a homossexualidade como doença até 1990, chamar de homofóbico um médico que adotava os procedimentos recomendados pela ciência da sua época é um anacronismo que desconsidera a homofobia intrínseca ao próprio sistema de pensamento de uma época e uma sociedade.

E cá pra nós, defender o capitalismo é defender um sistema patriarcal que impõe a heterossexualidade como norma, estabelecendo como padrão a família composta por um homem e uma mulher, explorando o trabalho reprodutivo feminino enquanto discrimina homossexuais produzindo toda a ideologia subjacente ao número de assassinatos de pessoas LGBT.

Não há de quê.

quarta-feira, 8 de março de 2023

Velhice, solidão e reacionarismo

Se em vez de mover esforços para disfarçar a idade que avança as pessoas movessem esforços para que a sociedade tratasse melhor nossos idosos a vida seria tão menos difícil. Ficar velho é natural. Ser descartado por ter reduzida a sua capacidade de produção é produto do capitalismo.

E com isso, vemos idosos sendo chamados de "despesas" ou "rombos previdenciários", abandonados à solidão por seus filhos e netos que, ainda que não quisessem, são obrigados por terem que trabalhar.

Quando você se perguntar porque a sua avó virou reacinha, pense que pode ter sido porque num grupo de Whatsapp ela se sentiu acolhida como não se sente numa sociedade que a trata como um fardo.

O que estamos fazendo com nossos idosos?

Se em vez de mover esforços para disfarçar a idade que avança as pessoas movessem esforços para que a sociedade tratasse melhor nossos idosos a vida seria tão menos difícil. Ficar velho é natural. Ser descartado por ter reduzida a sua capacidade de produção é produto do capitalismo.

E com isso, vemos idosos sendo chamados de "despesas" ou "rombos previdenciários", abandonados à solidão por seus filhos e netos que, ainda que não quisessem, são obrigados por terem que trabalhar.

Quando você se perguntar porque a sua avó virou reacinha, pense que pode ter sido porque num grupo de Whatsapp ela se sentiu acolhida como não se sente numa sociedade que a trata como um fardo.

segunda-feira, 6 de março de 2023

Democracia

DEMOCRACIA

Desde que ingressara no movimento, conciliava seu tempo entre os afazeres da universidade, seu estágio de meio turno e a construção da transformação do mundo. Sonhava com uma revolução sociocultural emancipatória que sabia, morreria sem ver. Quando fora posta na clandestinidade em razão do seu ativismo, trancou os estudos. Sonhava com o momento de poder retomá-los quando foi presa usando documentos falsos.

Quando a transmissão pirata sintonizou a câmera escondida na sala onde estava sendo torturada ela não sabia, não teria como ser avisada se o plano dera certo ou não. Só sabia que teria de tentar. Jamais teria oportunidade como aquela. Sempre fora elogiada por sua coragem. Ali, só sentia medo. Muito medo. Já estava debilitada física e mentalmente.

Na primeira coronhada cuspiu um dente com sangue e escarro.

— A professorinha acha que pode tudo, né? — usava um tom bastante sarcástico quando pronunciava "professorinha". Virou-se outro que amarrava os fios no pulso da moça – a gostosa aí fala bonito. Bora ouvir o que ela diz? Essa mulherada adora falar que macho não ouve? Que macho isso, que acho aquilo. Bora ouvir essa lindona! Molha ela, molha! Dessa vez com água mesmo, já que parece que ela não fica molhadinha com homem. — era um sujeito asqueroso, como são os policiais.

— Quero ver é gaguejar – disse o outro tocando pontas soltas de fios fazendo sair faisca.

Ninguém ali sabia, mas se tudo desse certo haveria um escândalo capaz de parar o pais. Agora a revolução viria. Todos finalmente conheceriam a verdade. As câmeras estavam ali, plantadas por um infiltrado que não tinha acesso à sua cela. Soube que o interrogatório seria ali e fez o que deu com os recursos que o grupo tinha. Tudo já havia sido pensado, os celulares ali eram proibidos por segurança. Ninguém telefonaria alertando para pararem a sessão quando a principal emissora estivesse transmitindo o horror. Até que alguém chegasse para avisar, o país inteiro teria visto uma sessão de tortura promovida pelo Estado Democrático televisionada ao vivo. A farsa do estado finalmente estaria desmontada. O dia seguinte, estariam todos nas ruas destruindo as instituições. A revolta seria inevitável. Seria o caos. Seria lindo.

Ela teria poucos segundos, sabia que perderia a consciência com os choques e não sabia mesmo se iria sobreviver.

— Fala mal do estado aí agora, professorinha. Pede aí democracia. Nós é a democracia agora. Fala pra gente quem a gente é. Pro-fes-so-ra!

Ela só conseguiu falar:

— Vocês são o Estado. E o Estado é quem está me torturando agora. O estado é só uma organização – gritou e se retorceu ao primeiro choque – é uma organização, uma forma de dispor as pessoas. Quando o povo diz o que deve ser, assim será. O povo não me quer torturada. – levou uma martelada na unha do polegar esquerdo e grunhiu feito um porco como os agentes queriam fazer com ela se sentisse. A desumanização começara com as violência sexuais desde que fora presa, dois dias antes.

— Ela quer ensinar a gente, a professora. Deixa ela falar — ele ria enquanto tocava as pontas dos fios estalando em faíscas.

— O estado é só uma forma. É todo mundo junto decidir como a sociedade vai funcionar. — um soco na barriga a fez vomitar.

— Joga água aí que eu vou fazer foguinho no fio! — ninguém naquela sala sabia, mas a sessão de tortura estava sendo televisionada por sinais que seu grupo conseguira aparelhar. Não duraria muito tempo.

Oficiais de todas as forças amadas davam telefonemas histéricos. A população estava atônita. As televisões em todas as casas estavam sintonizadas no mesmo canal. A farsa fora revelada e quando o exército conseguiu interceptar o sinal, ela já tinha perdido a consciência pendurada ensanguentada enquanto os agentes riam. Desta vez, não haveria justificativa para o país não parar de uma vez.

Na manhã seguinte as pessoas estupefatas, comentando sobre o absurdo que tinham visto. Esse era o estado a quem chamavam de democracia? O país viu uma moça jovem apanhar frente das TVs e não se falava em outra coisa. Os trens e metrôs lotados de gente indo para o trabalho, e aquele burburinho que não parava. Na portaria do prédio dois colegas se esbarraram em frente ao elevador.

— Você viu que horror?

— Eu vi, fiquei indignado! É inadmissível. Mas, é o que é, né?

Quando saíram do elevador, entraram para trabalhar. Despediram-se. Um deles sentou à mesa.

— Bom dia! — deu um telefonema, pediu um café, enquanto lia e-mails dos clientes pensando no relatório que teria que entregar às 10h daquela manhã. Sua agenda estava cheia. O dia prometia.

sexta-feira, 3 de março de 2023

Cabelo, racismo e branquitude



A diferença entre ambas as fotos foi de pouco mais de uma hora. Na primeira, passei uma escova no cabelo, para desembaraçar os fios e deixá-los "disciplinados". Logo em seguida tomei um banho, molhei o cabelo e deixei que secasse naturalmente, sem nenhuma interferência de pentes e escovas, sem nenhum produto pós-enxágue. Apenas lavo meus cabelos em dias alternados ou, no verão, diariamente, com xampu e condicionador. Deixo secar, a depois com os dedos enfiados de baixo para cima entre os cachos, dou uma leve chacoalhada, tomando o cuidado para não puxar as mãos por cima, desfazendo os cachos.Tem sido impressionante o tanto de elogios que recebo nos últimos cinco anos por causa dos "cabelos tão lindos" que dizem que eu tenho. E aí vem a informação talvez impressionante que me motivou a escrever este post. Eu só descobri como era de fato a textura do meu cabelo aos 36 anos. Hoje tenho 42, a poucos meses de completar 43. E hoje ainda me choca quando alguém, para elogiar traços da minha suposta beleza, fala justamente do cabelo. A maior parte da minha vida vivi em guerra com meus cabelos.

A imagem pode marcar um antes um depois, não apenas relativamente a um intervalo de uma hora, uma hora de meia. Mas talvez entre os meus 36 anos antes de 2016 e os meus cinco anos depois de 2018, quando, na prática passei a adotar os cachinhos. Os dois anos intermediários foram de aceitação. Já sabia que tinha cachinhos mas ainda não conseguia soltá-los.O processo socializador é tão perverso e tão forte. E é sobre isso que pretendo falar usando meu cabelo como mote. Sou um homem branco e isso é inegável. E acreditem, senti em mim os efeitos do racismo. Não não, nunca sofri racismo porque me chamaram de branquelo azedo, e não foi a brancura da minha pele que me colocou em situações nas quais eu pudesse sofrer racismo em função dela. Se você é branco, meu bem, você não sofre racismo. O máximo que te acontece – e foi o que me aconteceu – é o padrão de beleza imposto socialmente pela branquitude chegar em você seguido de um "mas". "O Gu é bonitinho, branquinho, mas..." E no meu caso o "mas" foi sempre o cabelo. "Mas, olha que cabelo feio ele tem". "Tão lindinho, carinha de criança de comercial de sabonete neutro, mas o cabelo, né? Tem que cortar, tem que manter baixinho."

A branquitude organizou a sociedade tornando o racismo algo estrutural, ou seja, moldou um sistema de distribuição de papéis sociais pautados na racialização dos corpos. Eu não teria a pachorra de dizer que por ser branco demais sofri racismo por me chamarem de cebola ou por ser alijado de qualquer processo seletivo voltado para pessoas pretas eu tenha sofrido "racismo reverso". Isso não existe. Racismo reverso é uma espécie de lenda urbana que só vê quem é branco e que nunca soube o que é levar tapa na cara de policial para ter uma mochila revirada no retorno para casa depois de um dia exaustivo de trabalho. E não é este papelão que eu irei fazer aqui nessa postagem.

Quem foi criança nos anos 80 foi testemunha de programas humorísticos terem personagens gays, cujo único motivo para serem divertidos era serem gays. Da mesma forma os programas traziam um personagem negro para ser alvo de chacota unicamente por ser negro. Sou do tempo em que um homem de pele preta era chamado de urubu na TV e em vez de indignação isso gerava riso. E naquele tempo eu agradecia pela cor da minha pele me tirar daquele lugar de objeto de ridicularização. Mas, o meu cabelo, que eu nem sabia ser cacheado, mas o tinha apenas como "duro" me "denunciava".

"– Menino, que cabelo é esse! Parece um bicho! Vai cortar!"

Quando muito pequeno, quem penteava meu cabelo era minha mãe. Quando adquiri alguma autonomia, passei a fazê-lo eu mesmo. Como tende a acontecer com as crianças, repeti o que me foi ensinado. E o ensinado, numa sociedade que tinha o Macaulay Culkin como padrão de beleza infantil, com sua pele branquinha, seu olho clarinho e seu cabelo lisinho, era que meu cabelo precisava ser liso também.

Para "domá-lo", não podia jamais deixá-lo secar. Precisava encher de gel aonda molhado, passar pente ou escova com força até deixá-lo com aspecto de que fora lambido por uma vaca. Claro, o visual não durava muito tempo e logo a natureza tentava se impor. Os cachinhos desfeitos no processo, tentando se realinhar, lutando contra o tanto de produto que eu passava na cabeça, produzia o visual da primeira imagem.

Numa mentalidade criada dentro de uma padronização de beleza eurocêntrica e que normalizava o racismo em horário nobre na TV, não causava nenhum constrangimento eu dizer que "não suportava meu cabelo de preto". E tem tanta camada errada nisso que fica difícil até saber por onde começar. Já chego lá.

O fato é que passei minha infância e minha adolescência enchendo meu cabelo de creme de pentear e penteando-o ou escovando-o e sempre com ele molhado, nunca tendo me dado a oportunidade de vê-lo secar naturalmente para saber como seria sua aparência. Parte da minha baixo autoestima durante a adolescência se devia ao fato de eu atribuir ao meu cabelo aspecto de palha de milho, de tê-lo como duro, feio, pixaim, de pico, ou de todas as formas pejorativas que um dia a sociedade racista encontrou para adjetivar cabelos crespos, sendo, inclusive, o próprio termo "crespo" imbuído de um valor negativo. Quando queriam por qualquer motivo me elogiar para minimizar o fato de que eu me frustrava com meu cabelo crespo, diziam "para com isso, seu cabelo não é crespo, é enrolado".

Ao fim da adolescência descobri o poder do alisante. Era uma espécie de creme entorpecente que passávamos na cabeça, e que irritava todas as mucosas do corpo com gases tóxicos que fariam olhos e nariz arderem e a boca secar enquanto aguardava para enxaguar aquela gosma fedorenta da cabeça. Mas, se prometiam dar "balanço e caimento" aos cabelos, valeria o sacrifício.

Quem já viu um cabelo alisado sabe que o visual não fica assim muito convincente. Longe de parecer um cabelo liso natural, ao menos na primeira semana, permitia fazer alguns penteados como a galera de cabelo liso. Quando as raízes começam a crescer, o caos se instaura, mas a gente jura que ainda é melhor do que o natural. Ao longo dos anos, alternei entre cabelo alisado e cabelo passado na máquina 3, afinal de contas "aquele cabelo que parecia palha" não poderia ter espaço. Continuei desconhecendo a textura do meu cabelo. E cada vez me achava mais feio de cabelo alisado.

Um dia, já depois dos trinta e tantos anos, descobri a escova como procedimento de alisamento artificial sem química, mas com alta temperatura. Comprei um secador e uma escova bem pesada e me joguei. Fazia em casa. Vou te falar. Até que pela primeira vez achei meu cabelo bonitinho. Já tinha lá uns 35 ou 36 anos. Tinha um visual menos artificial que o alisamento, permitia um certo balanço, dava algum caimento e me dava uma certa versatilidade para finalizar penteados. Mas, o procedimento de escovar os cabelos sempre começava com ele molhado. E, assim, com meus 36 anos de idade, eu desconhecia meus cabelos. Apenas sabia que tinha que fazer o que quer que fosse para que ele não secasse e não virasse "palha".

Um dia eu me ocupei com alguma atividade imprevista depois do banho e que me impediu de escovar o cabelo e olha só, que surpresa, meu cabelo secou naturalmente e eu vi que ele cacheava. "Gu, você tem cabelinho de anjo", disseram. Foi uma surpresa, um choque. E mesmo assim, o meu gosto já estava moldado pelo racismo entranhado na minha cabeça desde a mais tenra infância, e dele eu não iria me desapegar assim tão facilmente. Já sabia que meu cabelo, "ufa", não era crespo, era cacheado, como se cachoead fosse um elogio e crespo um defeito. Mas para quem viu Macaulay Culkin em todos os Esqueceram de Mim, e todos os galãs de cinema e TV terem seus cabelos lisos, não seria o bastante ter o cabelo "apenas cacheados, ufa, pelo menos não eram crespos".

Somente no começo de 2018, já beirando meus 38 anos foi que cansei daquele procedimento longo, que me dava tanto calor e me tomava tanto tempo, a escova, e passei a "assumir" os cachos. Olha que pesado isso! "Assumir", como se fosse a confissão de um crime. E de lá para cá, passei a ouvir com uma frequência que eu nunca conheci antes elogios do tipo "eu queria ter um cabelo tão bonito quanto o seu". Os cachinhos fizeram sucesso e hoje depois de tanta guerra com meus fios "rebeldes" finalmente passei a viver em paz com eles.

A história é essa. E sabe quando eu comentei que havia tantas camadas erradas em tudo que eu estava narrando que seria difícil até começar a problematizar? Pois então, primeiro a padronização de beleza pautada pela exclusão do cabelo crespo como potencialmente belo. Eu não gostava do meu cabelo porque, por desconhecê-lo, via-o como crespo. E o simples fato de ser supostamente crespo já seria suficiente para colar uma série de rótulos pejorativos, como "cabelo ruim", "cabelo feio", "parece uma palha"... Então, se estamos achando a primeira foto "feia" talvez tenhamos um grande problema nisso: por estou feio? É porque meu cabelo está esticado, duro e bagunçado? "Rebelde e indisciplinado" para que parâmetros? Fiz questão de escrever dentro das aspas algumas palavras e expressões ao longo do texto para marcá-las como oriundas de pensamentos dominantes, com os quais se um dia corroborei, hoje deles destoam meus pensamentos.

O corpo preto foi e é historicamente usado para força de trabalho. Antes escravizado, hoje assalariado nas condições mais precárias. E nada do corpo preto escapa ao racismo, nem mesmos os cabelos crespos originários das etnias que os têm. Assim como a branquitude cria a figura do preto agressivo, indisciplinado e rebelde por tentar resistir ao lugar de subalternidade onde sempre tenta encaixá-lo, assim também atribuímos valores negativos aos seus cabelos que não se encaixam no padrão de beleza eurocentrado que tentamos impôr. Nesta lógica, um cabelo liso é um cabelo bonito, harmônico; já um cabelo crespo seria "rebelde e indisciplinado" que precisa ser "domado". Estamos falando de uma fera?!

E ainda sobre o padrão de beleza, vale ressaltar como os procedimentos e normas são sempre voltados para a manutenção desse padrão. Um cabelo liso talvez "precise" ser penteado e desembaraçado, para permitir seu caimento e balanço, típicos do que seria "o belo". E por normalizarmos e normatizarmos o padrão liso, disponibilizamos para os não-padrões os mesmos artifícios que para nada lhe servem. A regra que aprendi foi a de que cabelos deveriam ser penteados e desembaraçados. Já vimos o que acontece quando um cabelo cacheado como o meu é desembaraçado. A quem atende essa regra que nunca me atendeu e que só contribuiu para que minha autoestima ficasse abalada?

Por fim, essa parada de eu, homem branco dizer que fui vítima de racismo, o que a princípio pode deixar muita gente revoltada. Repito: jamais teria o cinismo de comparar os efeitos do racismo que sobre mim recaíram com os efeitos do racismo que mata pessoas pretas diariamente por violência policial e políticas de extermínio. Porém, se por um lado os efeitos são diversos, por outro as bases são as mesmas. E tem origem na normatização da branquitude, como a existência padrão do ser humano. Para a branquitude, nós brancos somos pessoas "normais". Os outros são os negros. O outro, o secundário, o subtipo, a divisão, o racializado, o diverso, o hierarquicamente inferior, a exceção. Deste modo, ao ser excluído da beleza padrão porque, de acordo com um pensamento dominante na sociedade "embora branco, eu tivesse cabelo de preto" e, por conseguinte, entranhar em mim esse mesmo pensamento, condicionei a minha autoestima à presença de todos os aspectos fenotípicos da branquitude eurocentrada. Não era o bastante eu ser branco e ter olho verde, se o cabelo não era liso, então eu não era suficientemente bonito.

Meu cabelo causava riso. Era "ridículo" e eu nunca deixava que transparecesse seu visual seco... acordava e ia direto ao banheiro molhar e pentear. Na praias, estava sempre com um boné para evitar que secasse e virasse alvo de chacotas oi corria para o mar rodas as vezes em que ameaçava secar sob o sol. O perigo disso foi que eu mesmo passei a reproduzir esse racismo, estabelecendo que pessoas pretas estavam, portanto, excluídas da possibilidade de serem belas. E pela mesma razão, eu também estaria. E embora eu nunca tivesse sentido na cara uma bofetada de um agente policial por causa da cor da minha pele, por outro eu entendia como "normal" que isso acontecesse. Afinal, era com "o outro". O mesmo outro de quem eu, criança e adolescente racista, gostaria de me afastar em vez de me juntar para unir força na luta. O mesmo outro com quem eu, adulto com consciência antirracista mas com uma ideologia racista entranhada em mim e que me obrigava a fazer alisamento e escova, queria não ser confundido ao esconder meu cabelo cacheado. E só pra arrematar, continua sendo racismo associar o cabelo crespo a pessoas negras.