terça-feira, 31 de janeiro de 2023

Nojo de isentões. Ódio aos indiferentes.

De um lado um sistema no qual 800 milhões de pessoas morrem de fome enquanto alguns concentram as riquezas, gerando desigualdade social, violência e criminalidade. Do outro lado um sistema que pretende socializar os meios de produção para que todos tenham direito à vida digna, moradia, alimentação,saúde, educação e vestuário. Mas, a pessoa moderada jura que todos os extremos são iguais e prefere ficar no meio. O que é o meio? É onde "apenas" 400 milhões das pessoas morram de fome?

De um lado o racismo, que coloca pessoas negras em condições precárias de existência, submetendo-as à violência policial, discriminação salarial, subempregos ou desemprego. Do outro lado, uma luta antirracista que pretende acabar com essa realidade e colocar pessoas de todas as etnias e raças em igualdade de condições de vida. Mas, a pessoa moderada jura que todos os extremos são iguais e prefere ficar no meio. O que é o meio? É onde não se é racista nem antirracista? É ser "apenas" meio racista?

De um lado a LGBTfobia que padroniza identidades de gênero, orientações sexuais e relações afetivas, impedindo que as pessoas vivam as próprias vidas em paz, promovendo assassinatos de pessoas LGBTQIA+. Do outro lado, uma sociedade em que cada pessoa explore suas potencialidades, experienciando seus afetos de acordo com seus desejos, não se obrigando a cumprir um padrão cis-heteronormativo nas suas relações, em busca da própria felicidade. Mas, a pessoa moderada jura que todos os extremos são iguais e prefere ficar no meio. O que é o meio? É não matar gay, mas tudo bem bater?

De um lado o patriarcado, que põe a mulher em papel de subalternidade frente aos homens, fomentando violências das mais diversas, como estupro e feminicídio, além de promover desigualdade salarial e de oportunidades em função do gênero, objetificação do corpo feminino. Do outro lado, um sistema que põe homens e mulheres em pé de igualdade, permitindo que todos, independentemente do gênero, tenham os mesmos direitos e deveres, seja no mercado de trabalho, seja no cuidado familiar. Mas, a pessoa moderada jura que todos os extremos são iguais e prefere ficar no meio. O que é o meio? É ser "apenas" meio machista e se indignar quando mulheres são assassinadas, mas estar em paz quando apanham dos maridos?

Tenho nojo de isentões, e parafraseando Gramsci, tenho ódio aos indiferentes.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Saúde mental não é individual

Ainda sobre o assunto "saúde mental" ando muito de saco cheio da forma como a questão vem sendo abordada nos meus lugares de observação. Em todo canto um dedo apontado na cara com a ordem "esteja com sua terapia em dia". Cada um julgando cada um porque supostamente não está resolvendo suas questões. E nesse processo a vítima é culpabilizada. Recai sobre as costas do sujeito a responsabilidade pela própria cura, ignorando-se como a organização social nos adoece. "Se você não buscar ajuda, vai permanecer doente". A ajuda consiste num tratamento que, como não poderia deixar de ser, vira uma mercadoria na sociedade do capital. Se você pode pagar, beleza. Mas, não há terapia individual que cure a ansiedade em quem não sabe se terá uma refeição nas próximas horas ou se no mês seguinte terá como manter seu aluguel pago. O neoliberalismo isola pessoas ao passo que suga delas toda forma de vida digna. E enquanto fechamos os olhos para problemas de ordem coletiva, insistimos em julgar o indivíduo que não busca terapia, como se fosse apenas sua a responsabilidade pela própria cura. Não há saúde mental possível em uma sociedade que nos adoece

sábado, 28 de janeiro de 2023

Violento é o Capitalismo

Hoje participei de uma reunião da UJC Rio de Janeiro , a União da Juventude Comunista do Rio de Janeiro. Não tinha pretensão de abrir a boca num espaço formado por jovens para jovens. Estava quietinho no meu canto, apenas ouvindo o que aquela garotada inspiradora tinha a dizer. Até que um dos presentes falou sobre violência revolucionária. Era sua primeira vez numa reunião voltada a debater os desafios e as propostas necessárias ao avanço do socialismo numa sociedade polarizada entre uma extrema direita e uma centro-esquerda que constantemente faz um afago no neoliberalismo.

Ali, uma dúvida legítima foi levantada e eu não consegui ficar quieto. É muito comum ver pessoas rejeitarem a saída socialista por entenderem-na como violenta e, consequentemente, como uma medida moralmente reprovável. Quem me acompanha já se acostumou a ver que o discurso moralizador sobre a violência é um assunto que me mobiliza com uma certa força. Primeiro porque debater política é debater estrutura social e não moralidade. E depois porque, ainda que estivéssemos sopesando condutas individuais pelo viés da moralidade, a violência revolucionária não apenas não é imoral, como também é legítima.

Pedi licença e expus em três minutos — o tempo de marcação das falas de cada camarada que pedia a palavra — um resumo do que já ando falando há alguns anos: a violência não é um horizonte, mas muitas vezes é o único instrumento do qual dispomos.

Numa fala um tanto quanto atabalhoada de uma pessoa tímida que não tem muito traquejo em falar para coletividade, chamei atenção para o poder da ideologia que nos faz normalizar uma materialidade de opressão que já é extremamente violenta, mas que naturalizamos a tal ponto de a chamarmos de ordem social. E como essa ideologia impregnada na formação da nossa subjetividade nos faz considerar como violentas justamente as medidas que precisamos adotar para fazer cessar essa realidade violenta cotidiana que permite que 800 milhões de pessoas passem fome num sistema que já produz riqueza para alimentar seis vezes a população mundial, que hoje é de oito bilhões.

Enquanto a moralidade dominante insistir em demonizar meu discurso, tachando-o violento e, portanto, contrário ao que é "o certo", não vou me cansar de repetir as ideias que Paulo Freire traz na Pedagogia do Oprimido: a opressão é a relação inaugurada pela figura do opressor e, portanto, só existe porque existe o opressor. A partir do momento que quem lhe deu causa não lhe dá termo, somos nós que devemos fazê-lo, por qualquer método que se fizer necessário.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

Eugenia disfarçada de proteção animal?

Uma dica de sobrevivência aqui rapidinho... não nos iludamos com pessoas que amam bichos, tá? As piores pessoas que conheci na vida amam bichos. Dividi casa e confissões com um suposto amigo veterinário que resgatava cachorros das ruas e colocava para adoção. E de todas as pessoas com quem tive algum tipo de relação, a que mais se aproximou do perfil típico de um psicopata foi ele. Ainda bem que já morreu. Uma das outras piores que conheci chegava em minha casa e sentava no quintal para deixar meus cachorros fazerem a festa. Quando casamos, não durou nem cinco meses e eu espero que morra também.

Quer fazer um teste? Entra em alguma página de extrema direita e vejo os perfis das pessoas que se identificam. Quase todos são protetores de animais. Além do filtro "Força, Chape" na foto de perfil, quase todas as fotos de boné e óculos escuros dentro do carro, outro indicativo pesado de que a pessoa é bolsominion é o suposto amor aos animais.

A impressão que tenho é a de que rola um pensamento eugenista tipo "bichos são melhores que gente, é por isto então que eu vou defender genocídios". Mas, como não poderia deixar de ser, são esses mesmos idiotas que defendem liberação de caça e políticas armamentistas. É claro, bolsominion não tem capacidade cognitiva para juntar 2+2, e não consegue enxergar o mundo por uma visão sistêmica para perceber que as armas e a caça afetarão os mesmos animais que dizem proteger.

Anos atrás adotei duas cachorras das mãos de uma pessoa que tinha um trabalho muito ativo da proteção animal. Quando tínhamos um discurso antipetista, nos dávamos bem. Cortei contato quando vi que meu antipetismo me conduziria à esquerda radical e o dela a levaria à extrema direita. E não, não estou dizendo que ser protetor de animais é necessariamente sinônimo de mau caráter. Mas, pela via inversa, não se pode presumir que por gostar de bichos, essa pessoa seja legal.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

Socialismo é uma utopia?

Em conversa sobre política, uma amiga demonstrou certa resistência ao pensamento revolucionário, questionando se o socialismo não seria utópico demais.

Utopia é definida pelo dicionário Oxford, dentre outras definições, como "lugar ou estado ideal, de completa felicidade e harmonia entre os indivíduos" e como um "projeto de natureza irrealizável; quimera, fantasia". Palavra derivada do grego, formada pelo prefixo de negação "u" seguido de "tópos", que significa "lugar". Utopia seria, portanto, um não-lugar, ou um lugar que jamais existiria.

O século XX foi marcado, após a segunda Guerra Mundial (1939-1945), por uma disputa ideológica, chamada de Guerra Fria, que dividiu o mundo em dois blocos, o bloco capitalista, liderado pelos EUA, e o bloco socialista, liderado pela URSS. O socialismo era um regime em ascensão e sua influência desafiava a burguesia estadunidense e seu projeto imperialista para criação e dominação de mercados. A Revolução Russa, deflagrada em 1917, liderada por Vladimir Ilich Lênin, havia tirado a Rússia, um país de dimensões continentais, de uma condição de pobreza extrema, elevando-a a uma potência mundial capaz de fazer frente a um país como os EUA.

O socialismo foi e é realizável. Se fosse uma utopia, não teríamos tido essa experiência menos de cem anos atrás. Tanto é realizável que encontra resistência até hoje nas sociedades capitalistas, por representar uma ameaça aos interesses da burguesia, o que não aconteceria se fosse uma utopia. Tanto é realizável que resiste às ofensivas burguesas até hoje em Cuba e na República Popular Democrática da Coreia, constantemente ameaçadas por políticas genocidas promovidas pelo capital, através dos embargos econômicos e ameaças bélicas.

É incrível o poder que a ideologia exerce sobre as pessoas que nela estão imersas. Utópico é quando insistimos que somos todos iguais em um sistema que depende da desigualdade para se manter. Utopia é a democracia liberal capitalista, que, por se pautar na exploração do trabalho de uma maioria e na acumulação de capital por uma minoria que dita as regras, torna-se irrealizável. Utopia é dizer que todos temos liberdade de expressão ou liberdade de ir e vir, enquanto pessoas nas periferias mal têm o que comer e têm suas casas invadidas pela polícia. Utopia é dizer que todos temos o mesmo direito à vida, mas as balas perdidas são sempre e somente encontradas por corpos pretos nas favelas.

O projeto liberal, sim, é uma utopia. Mas, estamos tão inseridos nele que somos incapazes de questioná-lo, aceitando-o passivamente enquanto chamamos de utópica uma realidade que já se materializou e que foi — e ainda é em alguns lugares — tão concreta a ponto de ser constantemente sabotada. E sabotada pelo capitalismo, que é o sistema de produção pautado nas ideias liberais.

terça-feira, 17 de janeiro de 2023

Não morreu. Que pena!

Nesta semana um amigo me mandou uma imagem onde estava escrito "a monogamia está morta?". Imediatamente respondi "infelizmente não". Não monogâmico há quase uma década, houve um período em que eu dizia, no mais alto engodo liberal do respeito às liberdades individuais, que não via nenhum problema na existência da monogamia, desde que cada um vivesse suas relações em paz. Claro, o pensamento típico de quem acredita na individualização das condutas e ignora as estruturas sobre as quais uma sociedade se mantém.

Hoje, vendo a monogamia como uma dessas estruturas de dominação a serviço do capital, sendo uma forma hegemônica de relacionar-se, penso que se trata de um sistema de regras que precisa ser abolido. A monogamia se pauta no domínio de corpos, na concorrência, na competição, exatamente como são as formas do capital, além de perpetuar o ideal de família de tradicional, que nada mais é senão uma forma de produção de mão de obra para alimentar o capitalismo, não sendo plausível a sua manutenção enquanto elemento estruturante desta sociedade nociva.

Então, mantenho hoje meu posicionamento de que a monogamia, como um sistema hegemônico de relações, apropriado pelo capital, constituído desde então para ser uma fábrica de trabalhadores, pautado na ideia de que o ser humano é uma mercadoria, é uma mazela, sim, e que passa da hora de ser destruída.

domingo, 15 de janeiro de 2023

Linguagem neutra, opressão de gênero, feminismo, banheiro unissex e o Mês da Visibilidade Trans

Recentemente, no final do ano passado, participei de um debate com uma pessoa que se descreveu como “feminista, em algum nível identificada com o feminismo radical”. Por suas colocações no debate, sugeriu que existem duas formas de opressão distintas: a opressão de gênero e a opressão de sexo, apontando para o fato de que pessoas que possuem órgão genital masculino gozam privilégios na sociedade, a despeito do gênero com que se identificam. Em alguns momentos, no entanto, minha interlocutora estabelecia sinonímia entre sexo e gênero, e em outros momentos, apontava a distinção entre os dois eixos, mas ainda assim sustentava que ambos proporcionavam um tipo de opressão.

O debate havia iniciado por causa de uma conversa sobre o uso da linguagem neutra, apontado por minha interlocutora como algo desnecessário, do que eu discordei, embora reconhecesse que muitos debates sobre o tema e muitas formas de utilização acabam esvaziadas de sua importância por conta de banalizações no uso indiscriminado, inclusive em tom de ironia ou crítica. A partir daí seguiu-se uma longa conversa sobre pessoas trans, falocentrismo, banheiro unissex, transfobia, opressão de gênero e feminismo.

A conversa se constituiu por áudios da parte da minha interlocutora e textos da minha parte. Os áudios, muitas vezes estendiam-se para longas tergiversações que, se transcritas literalmente, podem alongar demasiadamente o texto, que já não está curto, dadas as minhas respostas escritas sempre muito prolixas em minha tentativa de demostrar minuciosamente os processos explanados. Assim, não trago a transcrição de todas as suas falas, mas trouxe algumas de suas considerações, ora transcritas em primeira pessoa na forma como foram ditas, ora citadas como discurso indireto. Vale mencionar, que tive vantagens na elaboração das minhas respostas, visto que esse diálogo aconteceu com minha interlocutora tendo gravado uma série de áudios em aplicativos de mensagens, totalizando cerca de meia hora de explanação; por ter me ocupado subitamente, falei que iria ouvir com calma e responder em momento seguinte. Assim, tive tempo para elaborar minhas respostas e enviar para ela, o que pode gerar a impressão de que eu lidava com uma pessoa despreparada. É preciso considerar que enquanto eu respondi em tempo posterior, tendo vantagem de ordenar as ideias, minha interlocutora falava no calor de uma conversa informal. Vale mencionar ainda que eu editei algumas das minhas próprias respostas para este texto.

Achei importante trazer aqui minhas considerações, uma vez que janeiro é o mês de visibilidade de pessoas transexuais e precisamos falar sobre o assunto se quisermos desmistificar preconceitos e inverdades que alimentam ódio e discriminação.

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“Eu respeito enquanto homem biológico ou mulher biológica (...) e não pelo que você quer ser” “Eu respeito o que você queira performar”

Gênero é social e não biológico. Trans identidade não é questão de querer. E se forma a partir das categorias preexistentes socialmente. O não binarismo é uma não identificação com alguma das categorias postas, mas que não pensa em outra para colocar no lugar. Isso se não considerarmos o próprio não binarismo já como uma categoria.

“A palavra ‘mulher’ vem sendo apagada (...) Agora se fala o “dia das pessoas que engravidam”, “pessoas que menstruam”, “pessoas com útero” (...) estão se apropriando de coisas intrínsecas nossas [das mulheres]”

O que é “intrínseco nosso”? O que delimita os contornos de uma categoria sociológica? O que é um homem? O que é uma mulher? É quem gosta de maquiagem, boneca, vestido etc.? A categoria se define, portanto, pelos marcadores sociais a ela atribuídos? E esses marcadores são imutáveis em épocas? Em lugares? Como então explicar que homem no Brasil em 2022 não usa maquiagem, mas homem na França no século XVIII usava? Maquiagem é intrínseco a ideia de homem? Ou de mulher?

“O não binarismo é igual o feminismo, só que faz uso de tudo que não é masculino sem querer se atribuir a ele o caráter de feminino...” [em um momento, minha interlocutora também havia questionado retoricamente se futebol seria coisa de menino e maquiagem seria coisa de menina e se isso seria suficiente para definir gênero]

Nesta fala, você usa exemplos factuais como “maquiagem e futebol”, para delimitar o que é gênero feminino ou masculino, e com isso, reforça exatamente o estereótipo que está sendo questionado sobre o que é ser homem e o que é ser mulher. E novamente, ignora que a identidade do sujeito se estrutura a partir de categorias preexistentes a ele. O sujeito nasce num mundo já estruturado e que o determina a partir dessa estrutura. Se quando nascemos, recebemos uma bandeja com A, B e C pratos no cardápio, não teremos de pronto a ideia de X ou Y como opções possíveis para pedirmos, e embora rejeitemos as opções que nos foram dadas, não criamos ainda novas categorias que nos abracem e não sabemos então que podemos pedir X e Y. É por isso que todo debate precisa ser levantado quando se abre um questionamento acerca do que está posto. Do contrário, a sociedade não evolui; a categoria homem e a categoria mulher são suficientes para nos definir? Quando assume que não binarismo é tão somente a negação do “masculino”, você cria um conflito lógico: você tenta criar uma ideia estruturada sobre outra, partindo da negação dessa mesma ideia que a estrutura. O não binarismo é justamente o questionamento do sistema binário homem-mulher, e negar legitimidade a este questionamento, apontando-o como unicamente uma negação da parte “homem”, primeiro, esvazia a própria noção de “mulher”, tornando-a um mero corolário de negação da ideia de “homem” (ou seja, tudo que não é homem/masculino, automaticamente passa a ser mulher/feminino), e segundo cria essa tautologia mencionada como problema lógico, resumido assim: “não se pode questionar o sistema binário homem-mulher, porque só existe homem-mulher, e o que não for homem, será automaticamente mulher”. A própria criação de uma categoria própria, “não-binárie”, apartada das categorias “homem” e “mulher”, já é fruto de uma dinâmica social que questiona as categorias anteriormente postas.

“E muitos homens se apropriam desse papo de não-binarismo”

Sim, apropriam-se, e isso deve ser denunciado, enfrentado, combatido, porém isso é um eixo diverso do eixo de discussão sobre formação de identidade cisgênero ou transgênero. Deixar de considerar um questionamento porque alguém fará mau uso dele é negar a existência de um problema (e consequentemente, abster-se de buscar soluções) por causa de outro problema que não é inerentemente sua causa, embora esteja por ela atravessada de alguma forma, mas como incidente, não como intrínseca. Há uma relação oportunista, e não de causa e consequência.

“Não é porque você se identifica com algo que você é algo. Porque existe a biologia, (...) a gente tem macho e fêmea, só que a sociedade criou estereótipos para esse macho e para essa fêmea. Um homem quem se diz não binário (...) Eu, por exemplo mergulho por três minutos sem respirar debaixo d‘água, um tempo superior à média, então eu sou um peixe?”

Novamente a confusão de conceitos: estamos falando de “homem”, conceito social relativo ao gênero e sua identidade, ou estamos falando de “macho”, conceito biológico para diferenciar quem tem um aparelho reprodutor masculino? O exemplo do peixe não é análogo à questão de identidade de gênero. Peixe é uma categoria da biologia. O conceito “peixe” abrange diversas características que lhe são elementares para que um animal seja assim considerado, não bastando que este animal passe três minutos sob a água, como você passa. Para contrapor à ideia “peixe”, que é referente a todo um grupo de animais, devemos usar a categoria que lhe seja equivalente no mesmo campo de análise. E aqui o que se vai é exatamente questionar quais elementos constituem a ideia de “peixe” para que possam se enquadrar no conceito; no mesmo campo de análise, a biologia, poderíamos discutir, por exemplo quais seriam os elementos constitutivos da ideia de “mamíferos”, comparando os conceitos, e estabelecendo suas relações. Não se contrapõe uma categoria biológica com uma categoria social. E no caso, ainda usando o exemplo “peixe”, se uma coisa para ser definida biologicamente como peixe precisa ter tais características, de tal forma que qualquer animal que tenha tais características possa ser enquadrado como peixe, quais são as características inerentes à categoria “homem” ou à categoria “mulher”, para que possamos enquadrar alguém dentro destes conceitos? É ter um órgão específico? É a equivalência com seu suposto correspondente biológico? Quem estabelece que maquiagem é coisa de menina e futebol é coisa de menino?

A sua fala explicita o próprio problema: a sociedade impõe aspectos sociais a conceitos biológicos, criando uma falsa correspondência entre sexo e gênero. “Olha que bonitinho, nasceu com pintinho, é o HOMEM da casa agora”, diz a vovó orgulhosa, cuja fala ainda é complementada pelo papai vaidoso, educado na mesma estrutura patriarcal que aquela criança receberá como dada: “fiquem em casa, meninas, porque quando crescer, esse garotão vai ser terrível!”. Pronto, tarde demais, começaram os marcadores sociais a partir da característica biológica. É exatamente aí que reside a questão: um homem se define pelo seu aparelho reprodutor? O patriarcado já existia no momento em que a criança nasceu. Essa criança vai herdar essa estrutura social e vai se constituir a partir dela. Os marcadores associados ao sexo são colados assim que ela nasce sem que ela tenha qualquer ingerência sobre isso.

“Um homem que se diz não binário não vai abrir mão dos direitos dele numa sociedade machista e patriarcal que nem a nossa”

Estamos falando de privilégio de homem ou privilégio de macho, enquanto conceito biológico? Quem goza os mesmos privilégios é quem “tem pau” ou é quem “é homem”? São sinônimos? Uma travesti goza os mesmos privilégios do homem? Não, não goza. Partindo da sua colocação, eu penso que poderiam até gozar de determinados privilégios de pessoas com pênis (mas, honestamente, aqui eu não consigo pensar em nenhum exemplo desse tipo privilégio), mas não de privilégios de homens, e aqui, novamente, temos dois eixos distintos: falocentrismo/privilégios de macho (categoria biológica de análise) ou machismo/privilégio de homem (categoria sociológica de análise). E aí, eu te pergunto: seu questionamento é sobre um HOMEM que se diz NÃO BINÁRIO? Ou UMA PESSOA COM PENIS se diz NÃO BINÁRIO? São dois problemas que se cruzam, mas não são os mesmos. Ou é homem ou é não binário/a/e. Neste aspecto, tem-se que homem é todo mundo que tem órgão sexual masculino ou homem é quem se enquadra em X, Y, ou Z características socais atribuídas a quem tem tal órgão? Eu próprio me identifico como homem, mas se me perguntam por que, eu não sei dizer, porque eu próprio não sei o que é ser homem. Apenas aceitei uma das duas opções que me foram dadas quando nasci. O não binarismo é, de alguma forma, a negação disso, mas também a negação do ser feminino, numa ação propositiva para inclusão de uma terceira categoria, ainda ampla, que pode vir a ser desmembrada ou não em outras categorias de análise. A história é quem dirá como esta ciência evoluirá. Igualaremos gêneros em direitos e deveres? Ou extinguiremos a própria noção de gênero para que este deixe de ser um marcador social? Um homem que goza de direitos por ser homem se identifica como não binário ou como homem?

“Se identificar com determinado sexo não te faz daquele sexo. Eu respeito a forma como você quer estar no mundo, mas não respeito a forma de você, como homem, biologicamente macho, que se reconhece como mulher trans, queira frequentar o mesmo banheiro que eu”

Novamente, sexo não é gênero. Sua argumentação entra num looping vicioso, uma vez que em momentos você fala de gênero e sexo como sinônimos, em momentos você fala como diferentes. Ou você está falando de um homem ou está falando de mulher trans. Se a premissa da qual você parte é de que homem é sinônimo de biologicamente macho, então não há qualquer coisa aqui para que eu diga, porque a minha premissa é outra. Nosso debate se encerra aqui. Até porque eu não vou me aventurar a tentar desconstituir o seu ponto de partida. Mas, se estamos ambos partindo do pressuposto de que ter pênis não é ser homem, aí eu novamente percebo que você traz a discussão em dois eixos: o eixo do gênero e o eixo do sexo. Cruzam-se? Sim, o tempo todo. Mas, são a mesma coisa? Não, não são. E aí, eu entendo que você tem dois pontos de partida, de acordo com cada interesse defendido:

1. Homem é quem tem pênis. Logo homem é igual a macho.

2. Homem é conceito social que não é a mesma coisa que macho, logo homem não é quem tem pênis.

E aí, diante disso, fica a questão: o critério para separar banheiro é ser homem ou é ter pênis? Se para você, forem a mesma coisa, você deslegitimará o processo de formação de identidade de pessoas trans, que é justamente a negação de uma correspondência forçada socialmente entre gênero e sexo. Isso para mim é transfobia e é justamente o que eu combato. Se forem para você coisas distintas, então se cria um outro problema, que é o critério de exclusão ou inclusão em banheiro, em esportes, ou no que for: separamos times de futebol e banheiros por critérios sociais, tipo meninos x meninas, ou por critérios biológicos, tipo pessoas com pênis x pessoas com vaginas. E aqui a gente volta à questão da terminologia: mulheres x pessoas com útero; homens x pessoas com pênis. Qual será o critério para se nomear a categoria que se está analisando? Se de fato existirem violências marcadas pelo sexo – estou assumindo como existentes, visto que você assim disse, e a minha ignorância sobre sua existência não me legitima a negá-la – podemos pensar em novas formas de políticas de inclusão e proteção, seja de mulheres, seja de pessoas com genitália feminina. Banheiros devem ser separados por sexo para evitar violência decorrente do falocentrismo? Devem ser separados por gênero para evitar violência de gênero? Enfim, desafios para pensarmos um futuro inclusivo e diverso.

“Os movimentos transativistas, ao invés de irem atrás de quem realmente os mata, de quem realmente os oprime, que são os homens, descontam sua raiva nas mulheres”

Que movimentos são esses que você menciona, que só perseguem mulheres? É um grupo geral e homogêneo onde se encontram todos os movimentos transativistas? Que movimentos são esses que atacam o sujeito em vez da prática? Eu realmente não conheço. Não estou dizendo que não existem, mas sim que desconheço os que eventualmente existirem. E se de fato existirem, do que eu não duvido, não compactuo com eles. Movimentos que eu conheço não combatem o indivíduo, e sim a estrutura. Não é combater homens ou mulheres, mas sim combater patriarcado, machismo, LGBTfobia. Não se trata de enfrentamento pela seara moral, não se trata de dizer que o João ou o José é malvadão e deve ser enfrentado porque ele pratica um machismo que é feio. No caso em exemplo, não se trata de perseguir ou não homens que praticam discriminação deliberada a pessoas transexuais. Embora, devam também passar por isso, mas, não se constituem apenas dessa forma. Trata-se, antes, de combater a naturalização de práticas reiteradas ao longo dos tempos que se estabeleceram como normas a passaram a constituir uma determinada estrutura sobre a qual se organiza a sociedade. Tais práticas são reiteradas consciente ou inconscientemente, com ou sem intencionalidade, e independentemente de serem ou não intencionais, devem ser coibidas, tanto se forem praticadas por José quanto por Maria. É essa a luta com a qual eu me alio. Então, os movimentos que conheço questionam essas práticas, para que sejam derrubadas, modificadas, erradicadas. Uma das práticas: impor ao indivíduo uma identidade atrelada ao órgão sexual com que nasceu. Outra das práticas: negar a autoidentificação como critério definidor de identidade. E os movimentos que conheço fazem isso. Não tenho nenhuma base para falar dos movimentos que você traz como exemplo, e vou até me informar sobre eles, até mesmo para poder me aliar a você e reproduzir a sua crítica a esses movimentos que enfrentam mulheres e ignoram homens como sujeitos das opressões.

[Num determinado momento do debate, minha interlocutora mencionou um exemplo de um campeonato de videogame, no qual as três finalistas na categoria feminina eram mulheres trans; com isso, ilustrava sua ideia de que homens se apropriam de competições no lugar das mulheres, roubando-lhes até a oportunidade de vitória. Mostrou uma imagem de três mulheres trans com baixa passabilidade cis, usando este fato como justificativa de que se tratavam de homens] “A categoria feminina teve três pessoas que venceram e as três pessoas eram machos (...) É uma galera que se aproveita de uma pauta para tomar lugar de mulheres”

Você realmente acredita que um homem aceite carregar todos os estigmas sociais decorrentes da ruptura com o gênero imposto socialmente por causa de campeonato de videogame? Você realmente acha que essas pessoas estão fingindo ser mulheres para ganhar campeonato na categoria feminina? É possível? É. É pouco provável? Também. Eu acredito nisso? Não, não acredito. E não vou fazer qualquer tipo de afirmação, mas vou levantar algumas conjecturas. Algumas possibilidades que não devem ser descartadas, lembrando que estamos tratando aqui de um casuísmo, e que não necessariamente reflete uma teoria geral. Mas, vamos lá, na nossa sociedade quem costuma ser socializado para jogar videogame? Meninos ou meninas? Ou ambos? Não tenho dados estatísticos, mas falo pela observação de um campo limitado, concentrado ao meu redor. Conheço pouquíssimas meninas/mulheres que gostam de games, conheço muitos meninos/homens que gostam. O que me faz pensar que talvez games sejam “coisas de menino”. Premissa 1 estabelecida, reserve essa informação. Passemos à premissa 2: a maioria das pessoas trans descobrem, discutem, apresentam, resolvem, seus conflitos de identidade a partir da adolescência, quando marcadores sociais de gênero falam muito alto e impõem mais distinções entre si. Mulheres trans, tendo sido socializadas como meninos na infância, tendem a ter mais contato com “coisas de meninos” do que mulheres cis, socializadas desde pequenas com “coisas de meninas”. Podemos então considerar aqui uma maior chance de “meninos” que posteriormente se descobriram como mulheres trans terem tido contato com jogos de videogames enquanto crianças e terem crescido mais perto desse universo do que mulheres cisgêneras. Quais as idades dessas moças trans que venceram a categoria dos jogos? Parecem jovens, na faixa dos 18 aos 20 e poucos anos. Novamente, conjecturando dentro de possibilidades, parecem-me pessoas que estão na idade de quem iniciou o processo de transição há muito pouco tempo e que por isso mesmo, estão ainda tão próximas dessa performance “masculinizada”, ou, como prefiro chamar, com tão pouca passabilidade cis. Há homens que se apropriam de pautas feministas para tirarem vantagem? Sim. Há homens que se apropriam de pautas pró-LGBT para tirarem vantagem? Sim. Mas, isso é uma questão incidente, não devendo ser tratada como necessária ou como uma relação inevitável de causa e consequência. Oportunismo existe e deve ser combatido através de mecanismos outros que não importem no esvaziamento de pautas antiopressão. Uma vez que eu parto da premissa de que a cultura do estupro existe porque há uma forma de estruturar a sociedade que mantém essa cultura, será essa forma de estruturação que entendo que deve ser combatida. Separar banheiros pode até impedir que esses abusos ocorram nos banheiros. E só. Não impedirá que os abusos que seriam praticados nos banheiros passem a ser praticados em quaisquer outros lugares. Separar banheiro por gênero garante que esses abusos deixem de existir? E separar por órgão sexual deixará? E não separar? A questão aqui não é só ter ou não ter banheiro unissex, mas, ter ou não ter uma separação por gênero condicionada à existência de um órgão sexual. Aqui reside o cerne da questão. Se não for no banheiro, será na vaga de emprego, será no esporte, será na quantidade de violência que cada grupo sofrerá unicamente por ser determinado grupo. E se mulheres ficam restritas à periferia social no reconhecimento dos seus direitos, alijadas da isonomia por terem sido sempre empurradas para a condição de inferiorização decorrente do seu gênero, a questão será social e decorrerá diretamente da forma como dispomos de categorias sociais como homem, mulher, não-binarie etc. Agora, se pessoas com aparelho reprodutor feminino – homens ou mulheres ou quaisquer outros gêneros que venham a ser considerados – são discriminadas em prol de pessoas com aparelho reprodutor masculino – homens ou mulheres ou quaisquer outros gêneros – a questão será ainda social, mas decorrerá diretamente da forma como lidamos com categorias biológicas.

“Se você é mulher, biologicamente falando, e se reconhece como um homem (...)”

Então não é mulher, é homem.

“(...) então você desde já assume que você está se rendendo aos padrões que o patriarcado e a sociedade te impõem, correto?”

Não, é o contrário disso. A pessoa que se recusa a aceitar o gênero que lhe foi socialmente imposto por causa do sexo com que nasceu está resistindo ao padrão socialmente imposto. Porque o padrão é estabelecer uma relação condicionante necessária entre sexo e gênero (se você tem TAL SEXO, logo você tem TAL GÊNERO). O que ela pode estar fazendo é reconhecer a existência de categorias sociais que foram postas por quem teve poder político para pô-las como dadas. E só. A pessoa reconhece que existe homem e existe mulher. Mas, também reconhece que deveria existir algo mais que não fosse limitado a homem e a mulher, justamente por reconhecer que essas categorias existentes não são suficientes para abranger as características que a pessoa traz em si. É a sua subjetividade. É a sua forma de se ver no mundo, autodeterminando-se a partir das categorias que lhe foram postas. E essa forma pode ser assimilando quaisquer dessas categorias e a relação estabelecida entre a as categorias sociais e as biológicas, como eu fiz ao me reconhecer como homem, tendo aparelho sexual masculino, e você fez ao se reconhecer como mulher, tendo aparelho sexual feminino. Pode também ser recusando as relações socialmente impostas, embora aceitando as categorias postas, como o faz quem se reconhece como homem, ainda que tendo aparelho sexual feminino, ou quem se reconhece como mulher, ainda que tendo aparelho sexual feminino. E ainda, pode ser negando as categorias sociais, tanto quanto as relações estabelecidas entre elas e as categorias biológicas, buscando uma terceira opção ainda não existente socialmente porque não foi anteriormente pensada, estudada, analisada... O não binarismo é uma forma de negar as categorias homem e mulher para se definir.

“Ser mulher não é gostar de ter unha grande, é muito além disso, assim como ser homem.”

Eu concordo plenamente com você, mas aqui você se contradiz porque volta a estabelecer que mulher e homem não se definem pelo sexo biológico, mas por características outras, socialmente estabelecidas. E quais são elas? É aqui que eu me perco quando tento estabelecer os contornos do que são homens e mulheres. Eu não sei dizer. Não sei quais são. E por não saber quais são, por não ter o poder de definir eu mesmo os critérios para que alguém se enquadre como homem, como mulher ou como não binárie, eu apenas aceito o critério da autodeterminação. Até que alguém me convença do contrário. Se você se diz mulher, então para mim você é mulher. E me basta. E autodeterminar-se não é querer. Não se trata de querer ser homem, ou querer ser mulher. Trata-se de se enxergar no mundo desta forma, por ter uma subjetividade moldada em um campo do inconsciente, muito mais profundo do que o campo da mera escolha.

“Não se entende muito bem por onde a masculinidade é apropriada, porque não é pelo falo, porque se fosse, as mulheres trans seriam respeitadas, mas elas não são. Existem mulheres que performam uma masculinidade muito grande, mas não tem falo, e mesmo assim, elas não são respeitadas pelo macho. Então, a masculinidade deriva propriamente do que? De onde vem o amor que o homem hétero sente pela própria raça? (...) O homem gosta de homem, ele não gosta de mulher”

CONCORDO EM GÊNERO, NÚMERO E GRAU COM VOCÊ, e continuo entendendo que aqui que você ainda continua se contradizendo. Porque aqui você está falando exatamente o mesmo que eu: não é falo que define o gênero. E quando mulher trans é discriminada, o falo não a protege dessa violência. A violência é de gênero, não de sexo. Quando uma mulher performa uma “masculinidade” e continua não sendo respeitada por ser uma mulher, é justamente o seu gênero o alvo. Quanto a homens trans que continuam sendo desrespeitados enquanto homens, porque são vistos como mulheres, isso reforça exatamente o problema que eu estou colocando no foco desde o começo: o de que a sociedade cria uma relação necessária entre sexo e gênero. E lutar para garantir a autodeterminação como critério de identidade é negar à relação entre sexo e gênero uma inevitabilidade. E é por isso que defendo a linguagem neutra. Porque a partir dela deixo de impor resistência à inclusão de uma categoria de análise que não me abarca. E este movimento me põe no lugar de quem se reconhece como integrante de uma categoria socialmente validada, a de homem, mas que também reconhece a necessidade de se validarem categorias outras. O que eu sou não deve ser a régua que mede o mundo. É confortável estar na pele de um homem cisgênero e quando me coloco na posição de não ser obstáculo à criação de um gênero diferente do meu, estou facilitando a sistematização das análises feitas a partir de tais categorias. A teoria criada a partir de uma materialidade até então não sistematizada por diversas razões, dentre as quais a falta de uma linguagem para determinar com precisão o que se pretende definir, poderá, em uma dinâmica dialética, permitir a criação de condições existenciais para grupos hoje marginalizados, que não se enxergam como pertencentes a nenhuma das categorias que estão postas hoje.

Sobre “homem gostar de homem”, só posso concordar. Já vi alguns textos sobre essas relações, de que homens só verem mulheres como objeto sexual, mas que afetivamente estão sempre se relacionando com outros homens e colocando as mulheres em posição de subalternidade. Concordo. E não vejo aqui como essa questão impacta como tudo que estamos debatendo. Novamente, enxergo como uma questão estrutural que põe mulheres numa condição de subalternidade. Mas, se estamos falando de homens e mulheres, não estamos falando de órgão sexual masculino ou feminino.

“Eu acredito que [a linguagem neutra] seja para acariciar ego. Se você não se identifica com nenhum dos dois e você quer que seja criado só porque você quer um terceiro pronome (....)”

Novamente, a formação de identidade não é um mero querer. Isso é um dos meus pontos de partida. Não estou estabelecendo uma relação de equivalência entre identidade e vontade. Eu SOU aquilo com que me identifico. O que eu QUERO SER é exatamente o que não sou. A formação de identidade é percepção e não escolha. O indivíduo se percebe de determinada forma, a partir de fatores interpessoais, intrapessoais e culturais. E faz parte desse processo a comparação com o outro. Quanto mais desenvolvida essa percepção, mais facilmente o indivíduo se reconhece. E a linguagem será uma das ferramentas pelas quais nós, que já nos percebemos e nos sentimos pertencentes, poderemos contribuir do nosso lugar privilegiado para que outras pessoas também se sintam pertencentes à sociedade que até então as exclui quando lhes retira a própria identidade por tentar encaixá-la em conceitos metafísicos e abstratos, prontos, dados, e que não lhe abraçam. Querer é outra coisa. E claro, haverá situações em que não saberemos se a pessoa está apenas “querendo ser” ou se está “se identificando como”. Mas, vamos negar a identidade de X, Y ou Z para impedir que A, B e C se beneficiem de alguma forma, fazendo com que um grupo inteiro seja prejudicado pelo oportunismo de uns poucos? Ou vamos incluir uma nova forma de pensar pessoas, incluir uma nova forma de linguagem, incluir uma nova forma de trazer mais gente para o seio da sociedade, ainda que isso permita uma ou outra pessoa tirar vantagem disso? Eu fico com o benefício da dúvida, e opto por mudar a linguagem, mudar o pronome, acrescentar um novo gênero, mudar a forma de chamar as pessoas. E se alguém estiver tirando proveito disso, nós deveremos estudar novas maneiras de fiscalizar e impedir essas pessoas. Evidentemente, novas formas de opressão poderão advir de uma nova configuração de sociedade. Categorias que são hoje inexistentes e que poderão passar a existir quando forem materialmente verificáveis, mas ainda não teoricamente sistematizadas. É assim que a ciência avança e negar a criação de novas categorias de análise porque pautamos o mundo com base na nossa vivência de mundo é uma forma de negacionismo científico com a qual eu não compactuo. E estamos falando de ciências aqui, já que ciências sociais também são ciências.

“Vitão” [minha interlocutora falava sobre homens heterossexuais que atuam com performances socialmente lidas como femininas ou não binárias, usando o exemplo do cantor Vitão, supostamente para ilustrar exemplos de apropriação oportunista de pautas de opressão por homens cisgêneros heterossexuais]

Pessoa de 23 aninhos. Em entrevistas relativamente recentes, do meio desse ano, já disse que sempre se viu como homem hetero, mas que estava se descobrindo de outras formas, sem saber exatamente como se encaixar. Pausei para pesquisar agora. Em entrevista de maio de 2022, ao Portal Popline ele fez essa declaração: “Não sei exatamente onde me encaixo. Até então sempre me vi como homem hétero, sempre gostei de mulheres (...) tenho me entendido de outras formas, me relacionado com pessoas diferentes e é muito disso”. Essa fala dele reforça um pouco algumas das coisas que apontei aqui, como o processo de formação da identidade estar relacionado à percepção de si, mediada pela percepção do outro, e por um processo comparativo a partir das categorias que lhe são dadas. O sujeito tinha um leque de escolhas que lhe foi jogado na cara, deveria se encaixar na caixinha “homem” ou na caixinha “mulher”, passou infância e adolescência tentando se encaixar até que percebeu que talvez não pudesse. Sua percepção de si como um homem hetero talvez tenha acontecido unicamente porque não lhe fora dada uma opção diferente. Até que ele chegou a uma idade em que possa ter percebido que aquelas caixinhas que lhe foram entregues não lhe cabiam. Quanto de sofrimento vivencia uma pessoa que busca se encaixar? Só posso falar sobre o meu sofrimento ao tentar me encaixar na condição de homem hétero unicamente por desconhecer uma forma diferente de ser homem gay que me garantisse uma existência com dignidade reconhecida. Sabia que havia formas diferentes de ser homem, uma delas é ser um homem gay. Na minha infância e na minha adolescência, identifiquei-me como tal, desejando exatamente não ser. Porque eu simplesmente desconhecia que homem gay poderia ser uma forma digna de existir. Minhas referências foram todas de gays ridicularizados por discursos e imagens estereotipadas que via na TV, na escola, na rua. Eu desconhecia o desdobramento possível da categoria “homem gay” que não fosse para me inferiorizar. E assim, sofri por desconhecer qualquer forma diversa de ser gay no mundo, que não fosse ser objeto de riso, de ridículo, alvo de agressão. Talvez tivesse sido diferente se quando criança eu tivesse sido apresentado a outras formas de ser gay no mundo. Eu não sei o impacto que terá para uma pessoa não binária ver-se num texto que traz naturalizado o gênero neutro. Sei que quando me chamavam pelo feminino eu me ofendia, sei de uma amiga alta que, por sua altura era chamada de “Sandrão”, e se ofendia porque entendia que “Sandrão era nome de sapatão” (aqui já havendo uma inferiorização da própria condição de “sapatão”, tomada automaticamente como ofensiva). Estamos falando dos anos 90. Se eu conheci na pele essa forma de me sentir desrespeitado unicamente porque não usaram comigo um pronome com o qual eu me identificava; se eu conheci uma mulher que se ofendia porque não usavam com ela um pronome com o qual ela se identificava; por que então irei negar a quem não se enxerga como um gênero ou como outro o direito de sentir o mesmo pertencimento que me fora sonegado e cuja dor eu conheci, apenas por que o português que estudei trazia dois artigos de gênero? O que custa colocar um E no lugar de um A ou de um O?

“Transativismo é nocivo para crianças”

Por quê? Eu devo partir do pressuposto de que existe uma pauta moral conservadora, que é a adequada para crianças, dentro da qual está ok mostrar que existem pessoas cisgêneras, mas não está ok mostrar que existem pessoas transgêneras? Só por que pessoas transgêneras subvertem a ordem posta? Assumir isso é assumir que a sociedade deve ser estática e que qualquer transformação social deve ser evitada. Isso nos obrigaria a aceitar o status quo do machismo, do racismo, da homofobia, da transfobia, do capacitismo, do etarismo e de diversas outras formas de organizar a sociedade a partir de discriminações que não deveríamos questionar.

“Não venha tirar meus direitos. (...) Banheiro feminino é uma conquista feminista. Uma galera teve que morrer para ter banheiro nosso, para ter nossa privacidade. Aí vem um monte de mulher com pinto querendo entrar no meu banheiro. E você vai querer retirar direitos meus, isso eu não vou admitir”

Parece papo de reacionário que acredita que conceder direitos e determinados grupos importa em retirar os seus. E novamente, estamos falando de gênero ou estamos falando de sexo? É o pênis quem estabelece o gênero da pessoa? O critério para separar banheiro é o gênero ou o sexo? Ou ambos?

“Tem mulher trans que é lésbica e isso não entra na minha cabeça”

Temos três eixos distintos que não necessariamente encontram uma correspondência uns nos outros, mas que a sociedade determina que deve haver essa correlação. Orientação sexual, identidade de gênero e sexo biológico. Por inúmeras questões, dentre as quais o próprio patriarcado, criou-se socialmente uma falsa correspondência entre os três eixos, de tal forma que, se você nasceu com aparelho reprodutor masculino, você automaticamente é etiquetado como “homem” e automaticamente é etiquetado como “sente atração por mulher”. Na maioria dos casos essa correspondência encontra lastro na materialidade e talvez justamente por isso tenha sido naturalizada como padrão. O padrão é você ter um útero e automaticamente ser tachada de “mulher”, e automaticamente se estabelecer que “você se atrai por homens”. Na prática não é sempre assim. E essa correspondência entre sexo, gênero e orientação sexual não é inerente. Há homens cis gays, há mulheres trans lésbicas, há homens trans heterossexuais, mulheres trans heterossexuais, e toda uma diversidade de combinações entre esses eixos. É nosso pensamento limitado pela forma como a sociedade nos apresenta esses eixos que dificulta formas diferentes de pensar e nos impede de abrir nossa cabeça para além do nosso lugar de privilégio, fazendo de nós obstáculos à existência plena de pessoas que encontraram uma forma de existir diversa da nossa. Eu quero integrar essas pessoas e não exclui-las.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Mazelas de uma igualdade de fachada

MAZELAS DE UMA IGUALDADE DE FACHADA

"Desde já o acusado, reconhecendo-se pessoa de classe e raça histórica e estruturalmente oprimidas por um Estado pós-democrático¹, e que não encontrará neste mesmo Estado uma igualdade material de condições, embora formalmente prevista no artigo 5º da Constituição Federal, informa ter interesse na realização do acordo de não persecução penal, ainda que, para isto precise confessar um crime que não praticou.

O acusado identificou neste juízo um mínimo de sensibilidade às questões sociais, haja vista sua disposição em insistir perante o Ministério Público pela proposição do acordo de não persecução penal, na forma do artigo 28-A. Percebeu neste juízo, enquanto braço do Estado, uma tendência que jamais pôde verificar anteriormente neste mesmo Estado: acostumou-se desde a mais tenra idade às injustiças sofridas em razão da cor da sua pele e da sua situação econômica, não sendo beneficiado por qualquer tipo de política de inclusão promovida pelo Estado. Prova disso foi o tratamento recebido pelos agentes policiais que lavraram o ato de prisão em flagrante, que lhe agrediram com socos, pontapés, tendo mesmo pisado em seu rosto.

Com isto, informa que, para atender ao requisito do artigo 28-A do Código de Processo Penal, propõe-se a confessar o crime para que não tenha contra si a persecução penal por parte de um Estado que sempre lhe negou oportunidades e que certamente lhe negaria a liberdade ao fim da presente ação, não sendo bastante para um resultado diverso toda a boa vontade e a consciência social demonstradas por este juízo.
_______________

1. Para o jurista Rubens Cassara, juiz da 43ª Vara Criminal desta comarca, em sua obra já citada “Estado pós-democrático: Neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis”, o Estado pós-democrático é aquele no qual “o governo se põe abertamente a serviço do mercado, da geração de lucro e dos interesses dos detentores do poder econômico, o que faz com que desapareça a perspectiva de reduzir a desigualdade, enquanto a “liberdade” passa a ser entendida como a liberdade para ampliar as condições de acumulação do capital e a geração de lucros. Na pós-democracia a liberdade intocável é apenas a que garante a propriedade privada, a concentração dos meios de comunicação de massa, a fabricação de “próteses de pensamento” – televisores, computadores, smartphones etc. – capazes de substituir cidadãos por consumidores acríticos, a acumulação de bens, os interesses das grandes corporações e a circulação do capital financeiro. (....) Também desaparece qualquer esforço dos agentes estatais no sentido da concretização dos direitos e das garantias fundamentais.”

quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

O ano é 2029 e o amor venceu

O ano é 2029. Brasileiros que lutaram contra o comunismo lulista em 2023 conquistaram o poder. A cor vermelha foi proibida junto com a vacina na Constituição Cidadã de Bem. A arma de fogo passou a ser uma tradição como presente do batizado que acontece na Igreja Evangélica Unificada, poucas semanas após o nascimento.

Um dia um cidadão de bem caiu da sua moto e abriu um corte. Descobriu horrorizado que o sangue é vermelho. Não havia mais ensino de biologia nas escolas. A Ciência estava proibida, sob pena de prisão. Transeuntes também viram o sangue do acidentado. Vermelho. Aos gritos de "comunista! comunista!" partiram para o ataque. "Ele é vermelho por dentro. É um melancia! Mata!"

Na confusão que se seguiu, outros se feriram. Logo uma horda de cidadãos de bem, ávidos por combater aqueles comunistas, se juntou em um movimento crescente de amor à pátria. Em pouco tempo, o último patriota sobrevivente deu-se conta de que seu sangue também era vermelho. "Jamais serei um comunista!" Disse antes de disparar o gatilho contra sua própria têmpora.

O amor havia vencido.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

Que Rei Sou Eu?

O papo era sobre programa humorístico de TV aberta dos anos 90 e anos 2000. Meu interlocutor comentou que nunca gostou do “Casseta & Planeta”, ao que rebati com a fala: “Eu adorava [quando adolescente]. Hoje eu acho que odiaria. O zeitgeist dos anos 90 permitia achar graça naquele formato machista, homofóbico, capacitista, racista...”

Em tempo, quando uso numa conversa informal a palavra “zeitgeist”, há uma certa pitada de ironia nela. Na verdade, não sei se é exatamente ironia, mas há um certo gracejo no uso do termo, que por ser rebuscado demais para papos de botequim e de aplicativos de mensagens instantâneas, soa pedante. É um uso reducionista por sua mera tradução literal, aqui empregada como sendo o “espírito do tempo”. Quem pôde ver Banheira do Gugu nos anos 90 ou os Trapalhões nos 80 sabe que racismo, homofobia, objetificação do corpo da mulher e sexualização infantil eram bastante tolerados pela sociedade conservadora — e hipócrita — que consumia essa programação na época. Era o espírito daquele tempo.

A partir desse momento, pus-me a refletir sobre a influência da programação televisiva na formação da nossa personalidade. É algo que venho observando já há algum tempo em mim próprio, num exercício de autoconhecimento. Estou revendo a novela “Que Rei Sou Eu?”, que foi exibida na Globo em 1989, em um contexto sociopolítico bastante específico, após a promulgação da Constituição Federal de 1988, que formalmente extinguiu o regime ditatorial no Brasil, inaugurando o suposto estado democrático de direitos que, também supostamente, se encontra vigente até hoje (sabemos que é um mito, mas não é o assunto aqui).

A novela é ambientada no ano de 1789, num país fictício, o Reino de Avilan, governado por uma rainha medíocre, Valentin, e um rei tirano, Petrus III, um impostor que usurpou o trono que, por direito seria de Jean Pierre, um plebeu revolucionário que é filho bastardo do rei falecido Petrus II. Debatendo a luta de classes entre os rebeldes, grupo de plebeus liderados por Jean Pierre, e a nobreza, representada pela corte que vive no palácio às custas da exploração do povo, a novela satiriza o Brasil da época, comparando-o à França absolutista, portanto, pré-revolução. Os rebeldes passam a trama tentando tomar o poder e extinguir aquela classe parasitária, assim como fez a burguesia, que um dia foi “a esquerda”, na Revolução Francesa.

Estar revendo essa novela tem sido uma experiência fascinante. Para o bem e para o mal. Durante anos, talvez por ter sido a primeira novela que vi na vida, “Que Rei Sou Eu?” foi a minha novela favorita. Para a criança de nove anos que eu era, aquele cenário de reis e rainhas, castelos, cavaleiros, bruxos e feiticeiras era lúdico. Basicamente era o que eu via. Hoje consigo ver como tudo era mal-feito, das atuações aos erros de continuação, dos figurinos aos cenários. O texto no geral é um horror, com personagens vazios que falam gritando o tempo inteiro, o que talvez fosse o padrão humorístico da época (a novela se propunha a ser uma comédia satírica) e se contradizem de uma cena para outra, feitas nitidamente para “encher linguiça”.

Sobre o espírito do tempo, hoje eu fico chocado como as relações abusivas oriundas da opressão de gênero eram naturalizadas na nossa sociedade. Há um machismo escancarado e absurdo. Importante mencionar que os costumes retratados na novela, embora ambientada no final do século XVIII, eram os dos anos 80, nos quais eu passei a minha infância e dos quais recebi todas as influências.

A sociedade dos anos 80 era imensamente mais tolerante e conivente com esse comportamento que a atual. A tal ponto que os próprios mocinhos do enredo, personagens que agem em conformidade com a moral vigente (construídos para serem as influências positivas com as quais o público supostamente deveria se identificar) agarravam as mulheres à força, num enredo tecido de tal modo, que o espectador ainda torcia pelo "romance do casal", que inevitavelmente aconteceria ao final da novela.

Há uma personagem "feminista" que, em uma cena emblemática, expõe uma argumentação sobre a libertação feminina. Representando a mulher independente e emancipada, ela solta a pérola "foram ideias que meu marido me deu". Sim, era ruim nesse nível.

Apesar de tudo, há uma parte da novela que envelheceu muito bem, que é justamente a abordagem da luta de classes. Neste aspecto, o texto segue atualizadíssimo e eu quase fico admirado pela Globo permitir em seu horário nobre aquele texto falando abertamente sobre revolução e tomada do poder pelas camadas populares do Reino de Avilan, com quem o público iria se identificar e que, naquele contexto social, poderia ser facilmente identificada como uma revolução proletária. No livro “Realismo Capitalista”, Mark Fisher expõe como a sociedade está tão mergulhada na ideologia dominante que, para nós é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo, o que ajuda a explicar o fato de não termos ainda nos mobilizado efetivamente para promover uma revolução socialista. Isso explica a Globo não ter preocupação alguma com a influência que sua novela exerceria sobre as massas trabalhadoras. E é por isso que eu apenas “quase” me admiro, mas não me admiro de fato.

Por tudo que expus, está sendo muito interessante ver como essa novela me colocou em contato pela primeira vez com algumas formas de relações humanas e com sentimentos socialmente construídos, e que por anos estiveram arraigados na minha forma de ver o mundo. A minha forma de entender as relações monogâmicas, o ciúme, a amizade, o poder, durante muitos anos da minha vida, foram as que eu vi nessa novela.

Há uma personagem, a princesa Juliette, que embora seja da nobreza parasitária, é uma pessoa "do bem" e colabora com os rebeldes que querem tomar o poder. É uma jovem romântica, apaixonada pelo rei impostor, que é um tirano sanguinário. Ele mata, explora, oprime populações inteiras das vilas da Avilan. Ela odeia o que ele faz, mas não abre não do seu amor por ele. Nas entrelinhas a mensagem que ela passa é que não importa o que ele faz, se ele é o seu amor, ela vai lutar por ele, a qualquer preço. Para ela, o que importa é o que ele faz com ela própria, a despeito de como ele age para com os outros. Para ela, não importa que ele seja um assassino; se ele demonstra que a ama e se ela também o ama, então nada mais é relevante. É tipo “quem ama aceita qualquer coisa em nome desse amor”. Se eu não tivesse inconscientemente aprendido essa mentira, eu teria evitado muitos relacionamentos abusivos aos quais me submeti acreditando que o amor nos obriga a tudo.

A novela mostra a figura do homem forte, guerreiro e corajoso, e da mulher frágil, a donzela desprotegida. Há uma construção maniqueísta do bem e do mal sem nuances entre os extremos, que por anos povoou meus pensamentos, fazendo-me naturalizar essas formas sociais. E claro, a TV não deixava barato quando expunha o homem gay. O personagem gay era sempre o ridículo, o motivo do riso, de quem até mesmo os protagonistas, bonzinhos, mocinhos, zombavam. Quem se sente confortável para se aceitar gay quando suas referências são as de que você é alguém de quem os outros devem rir e ridicularizar? Lembro como me sabotei durante minha adolescência, escondendo da minha família a minha orientação sexual, mesmo testemunhando dentro da minha própria casa que havia ali um diálogo aberto sobre o assunto, mas que mesmo assim, não me deixava confortável, fazendo-me crer, sem nunca encontrar qualquer razão para isso, que ali eu não teria acolhimento.

Hoje eu me dou conta de que, por ser uma criança e um adolescente extremamente tímido e de poucas relações, eu era testemunha das relações dos outros, que eu via apenas na TV. E na TV eu via que pessoas gays eram alvo de chacota. Não importava que dentro de casa não fosse, a minha experiência me mostrava que "em todos os outros lugares" o gay seria alvo de chacota. O que eram esses “todos os outros lugares”, senão a TV, que era tudo o que eu conhecia do mundo?

Revendo a novela e revendo alguns filmes da época (exercício que também tenho feito e que tem sido surpreendente), eu entendo bem mais o pensamento de que crianças não devem ter acesso a determinado conteúdo sem a supervisão de um adulto. Não sei se proibiria. Nunca fui proibido de ver. Mas, creio que eu não deixaria um filho livre para ver tudo que quisesse, como eu mesmo fui deixado. Não reclamo da educação que recebi. Aliás, sempre elogiei essa permissividade que eu tinha. Eu sentia que tinha uma liberdade que meus colegas de escola não tinham: eu via filmes de terror que seus pais não os deixavam ver, e sempre achei que não tinha nada de problemático nisso. Mas, hoje, percebendo como minha personalidade foi formatada através das mídias a que eu tinha acesso, posso observar que durante muito tempo, naturalizei construções sociais nada saudáveis.

Hoje, certamente eu não proibiria um filho de ver nada que quisesse. No entanto, eu veria junto e depois conversaria a respeito. Vai querer ver filmes de terror, sozinho na sala à meia-noite, como eu via quando eu tinha sete anos de idade? Pode até ver. Mas eu vou ver também e a gente vai falar sobre isso depois. Lembro-me como eu achava o máximo porque minha mãe sempre me deixava ver filmes e novelas, e a única coisa que ela exigia era que no dia seguinte eu acordasse para a escola, sem dar trabalho e sem me atrasar. Havia uma noção de recompensa na educação que recebi. "Posso fazer o que quiser desde que...".

E essa noção até hoje me acompanha em muitos aspectos. No trabalho é assim. Eu não seria o chefe que instituiria formas específicas de trabalho, como cumprimento de horário, ou mesmo comparecimento ao local de trabalho. Mas, quando quisesse o resultado, ele deveria estar na minha mão quando eu pedisse. Quando tive estagiários, eu era sempre um advogado querido porque vivia aliviando seus lados, desde que os resultados fossem entregues. Quando cobrava cumprimento de horário era sempre porque eu estava sendo cobrado também por alguém hierarquicamente superior.

Por muito tempo, pensei que se algum dia tivesse um filho, educaria dessa mesmíssima forma como eu fui. Mas, hoje, revendo essa novela, revendo filmes que via quando criança, e observando a relação inequívoca entre o que eu via e a pessoa em que me tornei, eu jamais deixaria um filho ter acesso a determinados conteúdos sozinho. Graças aos deuses, nunca tive filho, porque hoje eu teria um monstro em casa. A forma como eu me vejo educando uma criança hoje é muito diversa do que eu teria feito uns anos atrás. Por mais que pregasse certos valores, como honestidade, dignidade etc., ainda assim, eu tinha umas noções bem individualistas sobre meritocracia, esforço, superação, que eu teria feito questão de reforçar numa criança para "prepará-la para o mundo" e que hoje fariam com que eu tivesse transformado meu filho num ancap e hoje o odiasse. Eu fui moldado numa ideologia liberal, né, gente? E eu era liberal em todas as suas contradições. Teria pregado ideias de liberdade, igualdade, respeito, direitos, "desde que..." E aí, tolerando racismo e misoginia, incluindo entre ambos uma infinidade de opressões naturalizadas, o céu seria o limite. Sabe deus o que entraria nesse "desde que".

Fechando todas as digressões nestas reflexões, rever a novela “Que Rei Sou Eu?” está sendo uma experiência de autoconhecimento que indico muito. Recomendo que revejam programas que viam quando crianças e quando adolescentes, observando suas respectivas influências sobre quem você se tornou. E quem sabe, acessando suas memórias mais antigas, você perceba que todos os atravessamentos das relações estabelecidas com a sociedade à sua volta – mostrada pela TV, pela Internet, pelas artes que você consumiu, pela sua família, pela sua escola, pela sua igreja – constituíram a forma com a qual você se posiciona frente ao mundo?

Mídia, cultura do medo e segurança privada

Nesta madrugada um guia turístico, Daniel Mascarenhas, de 31 anos, foi assassinado a facadas no Centro do Rio, na Rua 20 de Abril, que fica entre o Campo de Santana e a Praça da Cruz Vermelha. Duas assaltantes o abordaram com um simulacro de arma de fogo e, após verificar tratar-se de uma arma falsa, a vítima reagiu tentado recuperar o celular que havia entregado às assaltantes. Na luta corporal, uma das assaltantes o esfaqueou cinco vezes causando-lhe hemorragia que o levou a óbito.

Alguns veículos de mídia tendenciosa, dessas que jorram sangue quando rasgamos uma das duas páginas, começaram a responsabilizar consumidores e apoiadores do camelódromo localizado na Rua Uruguaiana, sob o argumento de que são cúmplices de roubo de celular, que depois de roubados são vendidos ali sem qualquer fiscalização. Por sua lógica, se você compra celular em camelo, está necessariamente financiando o mercado ilegal que se mantém à custa de receptação (compra e venda de produtos oriundos de outros crimes).

Ah, pronto! Como não poderia deixar de ser, para esses veículos de mídia a serviço do capital, a culpa é sempre do pobre. Não importa o que aconteça, farão com que a responsabilidade recaia sobre as camadas menos favorecidas da sociedade. Não estou negando a relação de causa e efeito que existe entre furtos e roubos com a manutenção de comércio ilegal de produtos roubados ou furtados. Mas, antes, estou fazendo um convite para uma reflexão que deve ir além da superfície, revelando mais do que o fenômeno imediato observável. Primeiro, devemos recusar veementemente a tendência aporofóbica, que parece ser sempre o caminho mais curto e mais simples para solucionar um problema social. Por mais tentador que pareça culpar a pessoa com pouco dinheiro que se vê obrigada a consumir em mercado informal, é preciso ter em mente que quem mantém esse mercado é justamente a desigualdade socioeconômica promovida pela burguesia.

O capitalismo se expande quando se criam demandas para que o mercado seja movimentado. E não é necessariamente a demanda que cria a oferta, mas o contrário: oferta que cria a demanda. E neste caso, não estou dizendo que, por existir um camelódromo onde produtos oriundos de crime são comercializados, então existirá a demanda por estes produtos. Mas, de onde surge a necessidade do consumidor adquirir tal produto, a tal ponto que, se necessário, prefere financiar o mercado ilegal a adquiri-lo de forma regular?

Antes de responsabilizar o consumidor, o apoiador ou o mantenedor de um camelódromo que atenda às demandas de uma classe empobrecida, precisamos responsabilizar a criação dessas demandas. A propaganda de um produto é um dos fatores que geram no consumidor o desejo de tê-lo para si. Acontece que numa sociedade em que as riquezas são desigualmente distribuídas, há quem tenha meios de satisfazer a este desejo dentro das regras do comércio regular e há quem esteja alijado dessa possibilidade por não possuir recursos financeiros que lhes permitam comprar no mercado formal o bem de consumo desejado.

No entanto, vivemos numa sociedade que estimula o consumo quando legitima a existência da alguém por sua capacidade de ter. Se temos o tênis da moda, somos pessoas descoladas, que encontraremos acolhimento nesta sociedade. Estamos sendo bombardeados por propaganda por todos os lados. Vista isso, compre aquilo, fume essa marca de cigarro para ser chique, calce esse tênis para ser descolado, use este aparelho de celular para ser alguém. O desejo de pertencimento nos leva ao desejo de consumir. A pessoa pobre consome o que consegue e, em muitos casos, somente consegue adquirir um aparelho eletrônico em um mercado informal, como no camelódromo da Rua Uruguaiana.

Fica o questionamento. O camelódromo onde produtos roubados são vendidos é um incentivo à criminalidade ou seria esta incentivada pela propaganda que nos diz o tempo inteiro que somente somos quando temos? No sistema capitalista uma parcela da sociedade é excluída das relações por sua impossibilidade de consumo. São pessoas marginalizadas que não foram absorvidas pela sociedade, tornando-se um estorvo. São os indesejáveis, cuja gestão consiste em políticas de afastamento, seja pela sua remoção física para periferias urbanas, seja por políticas de extermínio que paulatinamente promovem a morte dessas pessoas, de fome, de doença ou por violência estatal, seja por encarceramento em estabelecimentos prisionais precários, onde serão confinados longe dos olhos da sociedade "de bem", a sociedade composta por aqueles que podem comprar e vender.

Os veículos de mídia que insistem em culpabilizar os mais pobres pelas mazelas inerentes ao capitalismo, e que fecham os olhos para a real estrutura que cria e mantém essas mazelas, prestam um serviço precioso para quem tem interesse em manter essa estrutura de desigualdade. Ao criar no imaginário dos leitores a ideia de que a culpa é sempre do pobre, esses jornais tendenciosos propagam a ideologia da classe dominante, que fecha os olhos para os reais responsáveis por esse ciclo de violência: a burguesia.

Para a classe detentora dos meios de produção, é necessário estimular o consumo através da mobilização do desejo de ter. E para essa mesma classe, a manutenção da violência urbana produz um novo mercado, o da segurança privada.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Anarquia relacional

Ainda nesta semana, conversando com meu terapeuta, comentei sobre a dificuldade de explicar à maior parte das pessoas o que eu considero um relacionamento ideal. E que um dos empecilhos para que eu consiga estabelecer esse tipo de comunicação é justamente a utilização das categorias disponíveis no pensamento hegemônico acerca de como são construídas as relações o e têm como padrão o sistema monogâmico: o que define um namoro como namoro? O que define uma amizade como amizade? Parceria e lealdade? Presença ou ausência do sexo? E como diferenciar, então, uma amizade colorida e um namoro, se o sexo, o companheirismo, a confiança e parceria podem perfeitamente estar presentes em ambas as formas de relações?

Disse-lhe que quando tento descrever para as pessoas o tipo de relacionamento que para mim seria ideal costumo receber de volta sentenças do tipo: "então você não quer namorar, você quer fazer pegação" ou "para esse tipo de relacionamento, o melhor é estar solteiro".

Como não consigo descrever às pessoas o tipo de relacionamento que faz sentido para mim sem utilizar categorias prontas e determinadas, acabo tentando, por aproximação, fazer uso dos conceitos existentes no sistema dominante monogâmico, binário e limitador: "namoro", "casamento", "amizade", etc. Porém, quando falo "namoro", automaticamente meu interlocutor cria uma lista de requisitos que supostamente estabelecem o que seria um namoro para ele. Por desconhecer categorias dentro de um sistema de relacionamentos que eu entendo como ideal para que possa lhe descrever, e como tento apenas utilizar as já existentes para tentar ser didático, a imprecisão terminológica gera uma falha na comunicação. E invariavelmente a mensagem que eu pretendo comunicar não apresenta clareza. O mais próximo que consegui chegar foi "uma rede de apoio, sem hierarquia de afetos, pautada não no nome ou no rótulo que se dá à relação, mas aos sentimentos que se nutrem entre os envolvidos".

"Ah, Guto, isso para mim é suruba!"

"Isso é um desvio pequeno-burguês!"

"Então, isso que você quer é ser solteiro!"

Aí, eu desisto de tentar explicar. Nesta semana fui apresentado ao conceito de "anarquia relacional" e parece que uma grande porta se abriu na minha cabeça: acho que encontrei quem consiga me entender.

Para mim, é importante me encontrar nessas comunidades, porque eu já notei que os rótulos que uso não se sustentam na materialidade das relações que tento construir. Ou talvez a materialidade das relações não cabem nos rótulos que acabo usando. O que isso acarreta? Faz com que eu entre em relações que não duram mais que um ano, um ano e meio, porque no meio dela começo a ficar insatisfeito. E ainda saio como afetivamente irresponsável porque ainda bagunço o sentimento das pessoas que criam expectativas pautadas nas definições dadas tomando-se a monogamia por padrão.

Para entrar numa relação, percebo que estou sempre negociando com a sociedade para me fazer caber nela. Não falo nem dos acordo com a(s) pessoa(s) com quem me relaciono, falo de uma espécie de negociação que precede as relações. É como se eu já tivesse que reprimir a mera possibilidade de vivenciar meus desejos para tornar possível a chance de me relacionar. Afinal, existe um sistema de normas que determina como se deve relacionar, determinando o que é ou não legítimo, aceitável e moral. Então, se eu não me enquadrar nesse sistema, devo aceitar a solidão como destino, dado que ao longo das minhas relações, nunca encontrei quem compartilhasse dessas mesmas ideias contra-hegemônicas. É aí que eu negocio: abro mão de parcela dos meus desejos em troca da possibilidade de construir uma relação.

Um amigo meu uma vez me disse que constantemente se vê obrigado a trocar masculinidade por afeto. Ele se vê como uma pessoa afeminada que precisa se ocultar por trás de uma masculinidade que não possui e sequer tem interesse em possuir, para que consiga abrir a possibilidade de se relacionar. Com isso, deixa de se expressar no mundo com a feminilidade com a qual se enxerga e que gostaria de poder performar. Limita seu vestuário, limita a disposição dos seus pelos corporais, limita o uso de acessórios e penduricalhos, modula a voz, esconde as mãos... Parece um pouco com o que sinto: estou sempre negociando meus próprios desejos por afeto. E não se iludam, muito do que se chama hoje de "relacionamento aberto" traz tantas castrações de desejos, senão mais, do que as relações tidas como tradicionais.

"Tudo bem, nossa relação é aberta, mas não podemos ficar com ex".

"Somos um trisal, mas só podemos interagir se estivermos os três juntos, nunca com um só".

"Pode ficar com quem quiser, mas não pode se envolver emocionalmente".

"Não pode sexta-feira porque é o nosso dia. Mesmo que não possamos nos ver".

E no fim, das duas uma: ou eu escolho me afastar de todo mundo que pensa dentro dessa caixinha de regras e aceito a solidão como destino por não conhecer quem pensa parecido comigo ou me vejo limitando meus desejos para me encaixar numa relação que depois de um ano, um ano e meio, me enche o saco e eu pulo fora. Por isso foi um tanto libertador conhecer esse conceito de "anarquia relacional". E não é um conceito novo: o Manifesto da Anarquia Relacional mencionado no texto que postei anteriormente foi escrito em 2006.

E vejam, quando falo de desejos reprimidos, não é só sobre sexo. É prazer, mas não necessariamente sexual. É também ter que justificar o fato de querer ficar sozinho hoje, ter que justificar porque vou para a praia com amigos e não com a pessoa que está comigo, porque fui beber na Lapa e não fui pra casa do namorado, ter que explicar porque começar uma amizade depois de estar num namoro, já que até então eu só tinha amizade com X e Y, então "tá muito estranho você se aproximar assim de alguém". É um saco! Deixamos de ser donos do nosso próprio corpo para torná-lo domínio do outro, que tem sobre nosso prazer a chave para abrir ou fechar de acordo com a sua vontade — que é uma imposição por um sistema de regras sobre como devemos sentir — e não mais com a nossa própria liberdade sobre nosso próprio corpo. "Meu corpo minhas regras" vira uma frase vazia e hipócrita diante do fato de que meu corpo passa a ser obrigado a regras impostas socialmente quando somos orientados acerca do que podemos ou não podemos sentir.