segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Propriedade Intelectual e Acesso a Medicamentos

PROPRIEDADE INTELECTUAL E ACESSO A MEDICAMENTOS
(Texto de apresentação em processo seletivo para grupo de estudos na área de propriedade intelectual, escrito em 13/07/2022)

Recentemente o site de notícias Uol publicou uma matéria de cunho nitidamente eugenista (disponível no link https://noticias.uol.com.br/reportagens-especiais/dilema/), na qual apresentou um falso dilema que consistia na escolha entre salvar um bebê diagnosticado com Atrofia Muscular Espinhal – AME, uma doença genética que causa atrofia dos músculos e pode causar a morte precoce em crianças, e é tratável com o medicamento Zolgensma, considerado o remédio mais caro do mundo, pelo custo de R$ 6,4 milhões, ou salvar outras populações que supostamente demandariam investimentos menores em saúde pública.

A chantagem – não é possível pensar em outro nome para descrever o falso dilema apresentado – exposta na matéria informa que desde 2019 o Brasil já desembolsou uma média de 9,8 milhões por pessoa tratada com o Zolgensma e aponta algumas comparações do que poderia ser feito com esse mesmo dinheiro, dentre as quais, menciona que anualmente esse valor poderia tratar 4.260 pessoas vivendo com HIV.

Ao sopesar numa mesma balança a escolha entre salvar uma vida ou 4.260 outras vidas, a matéria toma como posta a estrutura capitalista que impõe a saúde como uma mercadoria e não como um direito, não questionando em momento algum o sistema de produção que estrutura nossa sociedade. Naturaliza, portanto, o capitalismo como uma estrutura inevitável. Assim o faz porque o próprio Estado está organizado dentro da estrutura imposta pelo capital.

Como marxista-leninista, partimos do pressuposto de que o Estado é uma organização político-jurídica instrumentalizada a serviço da classe detentora do poder político, a burguesia. Com isto, o direito emanado pelo Estado consiste num conjunto de normas que visam à proteção e à manutenção da propriedade privada dos meios de produção – o que inclui, dentre outros oligopólios, a indústria farmacêutica.

O Brasil, país localizado na periferia do capitalismo, tem sua constituição respaldada na livre iniciativa, resguardando, como um direito humano fundamental, a propriedade privada. Esses princípios se encontram na redação da Constituição Federal, respectivamente em seus artigos 1º e 5º. Deste modo, a legislação hierarquicamente inferior precisa estar coadunada com a Constituição, de tal forma que todo o ordenamento jurídico brasileiro está pautado na garantia à propriedade de quem pode dela ser titular.

Na esteira das diretrizes de Estado acima mencionadas, a lei nº 9.279/1996, que regula direitos e obrigações sobre a propriedade industrial, uma das modalidades de um gênero mais amplo, chamado de propriedade intelectual, dispõe sobre as regras para garantir ao inventor a propriedade oponível contra todos, para que somente ele, o inventor, possa explorar comercialmente sua invenção, impedindo que terceiros o façam sem sua autorização. Chama-se patente o título concedido pelo Estado para que o inventor possa impedir que outras pessoas façam uso comercial de sua invenção. Num Estado constituído por um documento formal – a Constituição Federal de 1988 – que menciona livre iniciativa, artigo 1º, IV, antes de vida, artigo 5º, caput, não surpreende a criação de mecanismos para assegurar a exploração econômica do que deveria ser um direito social – o acesso à saúde – tornado em mercadoria.

No caso da indústria farmacêutica, que somente no Brasil, de acordo com dados da Agência Nacional de Saúde – ANVISA, movimentou anualmente nos últimos anos cerca de 70 bilhões de reais , a patente é uma modalidade de proteção à propriedade privada do laboratório que desenvolve medicamentos, permitindo-lhes comercializar com exclusividade sua criação pelo período de 20 anos, conforme estabelece o artigo 40.

É necessário mencionar que a Constituição Federal, que assegura a propriedade privada como direito humano fundamental também assegura a vida e o pleno acesso à saúde. A doutrina jurídica é unânime ao citar que direitos humanos fundamentais não são exercidos de modo absoluto, e que, em havendo conflito entre eles, haverá necessariamente limites impostos ao seu exercício pelo respectivo titular. Aqui é possível enxergar a hipocrisia subjacente ao legalismo, quando a interpretação da norma permite equiparar como direitos igualmente tutelados o direito humano fundamental à vida e o direito à propriedade privada, alçado à categoria de direito humano fundamental por uma formalidade da lei. Vale mencionar que a mesma doutrina jurídica, entretanto, também é unânime ao afirmar que na hierarquia entre bens jurídicos tutelados pelo direito emanado do Estado, a vida é o que se encontra no topo.

Em se conflitando o exercício do direito à vida e o exercício do direito à propriedade privada, como deve proceder o Estado? Em um estado democrático de direitos, como se arvora ser o Brasil pelo seu texto constituinte, a propriedade privada jamais deveria se sobrepor à vida, tanto é assim que a própria Constituição estabelece que em seu artigo 5º, XXIII, a propriedade atenderá a sua função social. Neste caso, qual é a função social da propriedade assegurada pelo Estado na forma de concessão de patente, para que o inventor de um medicamento criado para garantir a vida possa explorar economicamente sua invenção? Ao estabelecer como uma de suas bases a livre iniciativa, o que se vê, na prática, é um descumprimento, pelo próprio Estado, das normas constitucionais que asseguram a vida e a saúde, em prol do lucro dos laboratórios farmacêuticos.

A pressão de movimentos sociais no mundo possibilitou que o Estado burguês – assim chamado o Estado capitalista, por ser instrumentalizado para assegurar o direito à propriedade privada – instituísse a chamada “quebra de patentes”, nomenclatura tecnicamente equivocada para se referir à licença compulsória, trazida na lei nº 9.279/1996, em seus artigos 68 e seguintes. Trata-se de uma exceção ao direito do inventor de manter o monopólio da exploração econômica do seu invento, motivado por situações que impõem a necessidade de expropriação para que atendam ao interesse público.

Dentre as circunstâncias previstas no caput e no § 1º, I e II, do artigo 68, além das causas arroladas no artigo 70, são condições que ensejam a licença compulsória o exercício abusivo dos direitos da exploração e o abuso do poder econômico, termos amplos e de difícil definição. A lei nº 4.137/1962 – já revogada – trazia uma definição de abuso de poder econômico consistente na prática de empresa em condições monopolísticas, que interrompesse ou reduzisse em grande escala sua produção sem justa causa comprovada para provocar a alta dos preços ou a paralisação de indústrias que dela dependessem.

Na ausência de uma definição legal de abuso de poder econômico, enquanto em 2020, cerca de 680 mil pessoas morreram de doenças relacionadas à AIDS em todo o mundo, conforme Relatório Informativo Unaids 2021, somos da opinião de que já configuraria abuso de poder econômico a obtenção de lucro aproximado de 16,1 bilhões de dólares como o registrado pela farmacêutica Roche em 2021, ou o lucro de 4,31 bilhões obtidos pela Merck apenas no primeiro trimestre de 2022, ou ainda o lucro de 2,22 bilhões registrado pela Novartis no mesmo período.

Vale ainda mencionar os artigos 71 e 71-A, com redação dada pela lei nº 14.200/2021, em razão do advento da pandemia de Covid-19, que incluiu como causas para a licença compulsória a emergência nacional ou internacional ou de interesse público declarados em lei ou em ato do Poder Executivo federal, ou de reconhecimento de estado de calamidade pública de âmbito nacional pelo Congresso Nacional, e ainda, por razões humanitárias e nos termos de tratado internacional do qual o Brasil seja signatário, licença compulsória de patentes de produtos destinados à exportação a países com insuficiente ou nenhuma capacidade de fabricação no setor farmacêutico para atendimento de sua população.

Vejamos que a redação da lei traz conceitos amplos e vagos, como “razões humanitárias”, “emergência nacional” ou “interesse público”, o que possibilita um amplo leque de possibilidades aptas a ensejarem a licença compulsória, ou “quebra de patente” para a produção de medicamentos de prevenção e combate ao HIV/AIDS.

O poder público deve assegurar a todos – sem distinção – o direito à vida e à saúde, não havendo que priorizar o lucro de uma indústria bilionária enquanto pessoas adoecem e morrem. Daí porque entendemos como chantagem uma notícia de jornal chamar de dilema a escolha entre salvar um bebê com AME ou 4.260 pessoas com HIV. Dinheiro para arcar com os investimentos na saúde há, o que falta é boa vontade de uma classe parasitária da sociedade, que se vale do Estado para manter seus lucros, enquanto parcela da população morre por falta de acesso à saúde.

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1. Fonte: https://i3wfarma.com.br/industria-farmaceutica/, acesso em 13/07/2022, às 22:31.
2. Fonte: https://unaids.org.br/.../2021_12_01_UNAIDS_2021..., acesso em 13/07/2022, às 23:54.
3. Fonte: https://valor.globo.com/.../roche-tem-queda-de-1percent..., acesso em 13/07/2022, às 23:34.
4. Fonte: https://monitordomercado.com.br/.../29600-merck-lucro...., acesso em 13/07/2022, às 23:37.
5. Fonte: https://valor.globo.com/.../novartis-tem-lucro-liquido-de..., acesso em 13/07/2022, às 23:42.

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